Tento rever
Cada dia
O sonho de
Cada noite
Em vão...
Vivo o dia
Vivo a noite
Em sonho...
Sérgio Bernardes
No início do documentário Bernardes, o arquiteto Thiago Bernardes pergunta para a câmera: “por que pararam de falar dele?” Para arquitetos da minha geração a pergunta intrigante faz muito sentido. Nas minhas aulas na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas no final dos anos 1970 e início dos anos 1980 muito se falava de Sérgio Bernardes. A casa que projetou e construiu na Avenida Niemeyer para sua família era tão frequente como a Casa das Canoas, de Oscar Niemeyer. Recordo-me de ter visto em projeção de slides a Residência Lota Macedo Soares em Petrópolis, de 1951, o Pavilhão da CSN no Parque do Ibirapuera, de 1954, o Pavilhão do Brasil na Exposição de Bruxelas, de 1958, o Pavilhão de São Cristóvão, de 1960, o Hotel Tambaú em João Pessoa, de 1962, além de comentários diversos sobre seus projetos para a Amazônia. E na minha primeira visita a Brasília, ainda na condição de estudante, conheci o Centro de Convenções de autoria do arquiteto, que recém-inaugurado abrigou o 10º Congresso Brasileiro de Arquitetos, em 1979.
Contudo, quando durante os anos 1990 e 2000 se consolida a produção livresca sobre a arquitetura moderna brasileira, Sérgio Bernardes e sua obra já estavam no ostracismo. Em 2004 Lauro Cavalcanti publica Sérgio Bernardes: herói de uma tragédia moderna, pequeno livro da coleção Perfis do Rio da Relume Dumará, e a bibliografia final é prova contundente desta situação: em textos mais recentes, o arquiteto é tema de apenas um artigo impresso em revista especializada, assinado por Alfredo Britto. Publicados em revistas digitais, constam da bibliografia outros sete artigos, todos do portal Vitruvius, dois deles assinados por Ana Luiza Nobre e João Pedro Backheuser, entrevistados no documentário Bernardes. Este e outro livro de Cavalcanti, Sérgio Bernardes – publicado em 2011 pela editora Artviva e em parceria com Kykah Bernardes, última esposa do arquiteto – parecem sinalizar uma reversão deste quadro de esquecimento, processo do qual faz parte o documentário.
Contudo, a pergunta incômoda do arquiteto Thiago Bernardes, neto de Sérgio e autor do argumento do filme, continua ecoando: “por que pararam de falar dele?” O documentário, em grande medida, se estrutura para responder a esta questão. O roteiro propõe o esquadrinhamento da trajetória do personagem a partir de duas pautas: o homem charmoso e atraente, cercado de mulheres ao longo da vida, oscilando da generosidade ao egoísmo, propenso às apostas radicais e às atitudes de risco – é o Sérgio namorador e cercado de amigos, contador de histórias, corredor de automóveis; e o arquiteto brilhante e engenhoso, sempre aberto às novidades, radicalmente descontente com a realidade vivida pelo país – é o Bernardes amigo de Niemeyer e que trocava experiências com Buckminster Fuller, líder carismático de uma grande equipe de projetistas, visionário propositor de ocupações humanas em todo o território brasileiro.
Estas duas pautas justificam a seleção das pessoas convidadas a darem seus depoimentos. Os críticos de arquitetura Ana Luiza Nobre, Lauro Cavalcanti e Guilherme Wisnik constroem a figura do arquiteto, que das casas magníficas para uma burguesia ilustrada do Rio de Janeiro evolui para programas maiores e cada vez mais complexos. Cabe aos depoimentos emocionados da filha Christiana e dos netos Thiago, Renata, Pedro, Olívia e Mana o papel de reconstruir o caráter multifacetado do pai e avô, lembrado como homem divertido e iluminado, mas nem sempre presente. E aos arquitetos Alfredo Schwartz, Murilo Boabaid, Marcio Rebello, Sydnei Menezes, Maria Ângela Dias e outros cumpre a responsabilidade de costurar o homem ao arquiteto, com lembranças que alternam a admiração pela criatividade aparentemente sem fim com que adornava seu cotidiano e dos que o cercavam, e uma condescendência reticente pelos deslizes e equívocos cometidos em momentos cruciais.
Estas duas pautas evoluem em paralelo, se entrecruzam de quando em quando, e culminam em peripécias que implicam em reviravolta na vida do homem e do arquiteto, com implicações profundas nos destinos dos amigos e familiares e da sua obra arquitetônica e urbanística. O pai e o marido abandonam a esposa e a família no dia de bodas de prata, deixando atônitos os convidados da festança há muito preparada; o arquiteto e o urbanista cruzam os limites aceitos pela categoria e projetam obras e concebem estratégias territoriais para a ditadura militar nos anos de chumbo da década de 1970. Se as falas emocionadas de filha, netos e amigos revelam uma reconciliação com a memória do homem falecido em 2002 – um perdão que converte a mácula em “busca da liberdade” –, os depoimentos dos críticos apontam para uma necessária revisão histórica do papel ocupado pelo arquiteto no desenvolvimento da arquitetura moderna brasileira e um olhar mais arguto para sua visão antecipatória sobre o papel da infraestrutura na civilização contemporânea.
O vasto acervo Sérgio Bernardes – depositado no NPD da FAU UFRJ sob a guarda zelosa de Elisabete Martins e que aparece no filme sendo consultado pela pesquisadora Adriana Caúla – é outro personagem emblemático deste documentário fundamental: dentro das inúmeras caixas de arquivo e canudos de papelão estão armazenados os registros desta trajetória ambígua e genial de um dos arquitetos famosos mais desconhecidos de nossa arquitetura.
Para terminar, comento uma cena emblemática – que ocorre após um falso final do filme, quando surge na tela o poema de Sérgio Bernardes que aparece neste texto como epígrafe. Em uma montagem inventiva, os diversos depoentes do documentário contam em jogral um causo ocorrido há muito tempo. É uma daquelas histórias contadas e recontadas incontáveis vezes, com todas as arestas aparadas por um polimento impecável. Nela, Bernardes se depara com um ladrão em sua casa e estabelece uma conversação harmoniosa, ajuda-o a roubar as coisas que não gostava e ainda chama um táxi para levar o butim. Não contente, arruma um emprego para o criminoso, que se tornará pai de futuro amigo e colaborador. Carismático e sedutor, bem humorado e gozador, mas sempre preocupado com o destino do outro.
nota
NE – Este texto é desenvolvimento da justificativa de premiação presente na Ata de Premiação APCA 2014, assinada pelos críticos de arquitetura filiados à Associação Paulista de Críticos de Arte. Os prêmios outorgados nas sete categorias – Homenagem pelo conjunto da obra, Fronteiras da arquitetura, Projeto urbano, Urbanidade, Narrativas urbanas, Difusão e Revelação – foram selecionados por unanimidade ou maioria a partir de critérios discutidos coletivamente. A responsabilidade de redação final coube a um determinado crítico, mas os argumentos foram discutidos coletivamente pelos críticos de arquitetura Abilio Guerra, Fernando Serapião, Guilherme Wisnik, Maria Isabel Villac, Mônica Junqueira de Camargo e Nadia Somekh. O crítico Renato Anelli não participou das deliberações finais por conflito de interesse, uma vez que estava em questão um nome de sua relação pessoal. A lista dos artigos referentes aos sete prêmios da Arquitetura é a seguinte:
SOMEKH, Nadia. Prêmio APCA 2014: Cristiano Mascaro. Categoria “Narrativas Urbanas”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.01, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
GUERRA, Abilio. Prêmio APCA 2014: Documentário Bernardes, direção de Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros. Categoria “Difusão”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.02, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2014: Alojamento estudantil na Ciudad del Saber, Panamá – SIC Arquitetura. Categoria “Revelação”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.03, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2014: Reurbanização da favela do Sapé – Base 3 Arquitetos. Categoria “Urbanidade”, modalidade “Arquitetura e Urbanismo”. Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.04, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2014: "Maneiras de expor: a arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi", curadoria de Giancarlo Latorraca, MCB. Categoria “Fronteiras da arquitetura”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.07, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
SERAPIÃO, Fernando. Prêmio APCA 2014: Ponte Bayer, passarela móvel sobre o canal Guarapiranga – Loeb Capote Arquitetura e Urbanismo. Categoria “Projeto urbano”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.08, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
sobre o autor
Abilio Guerra é professor de graduação e pós-graduação da FAU Mackenzie e editor, com Silvana Romano Santos, do portal Vitruvius e da Romano Guerra Editora.