Risca certeira
No conto A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa, o narrador descreve uma enigmática decisão de seu pai, “homem cumpridor, ordeiro, positivo”: sem motivo aparente, o patriarca encomenda uma pequena canoa, se lança ao rio para nunca mais colocar os pés na terra. A família ribeirinha observou o genitor até o fim da vida, como um morto-vivo, cuja presença incômoda foi potencializada pelo silêncio, pois dele ninguém mais ouviu palavra uma. Longe das beiradas, seguiu à margem da sociedade.
O texto permite interpretações de diversas naturezas, desde psicolgos, para quem o tema trata do conflito pai e filho, até religiosos que anunciam o enigma versar sobre a vida eterna. Difícil encontrar arquitetura nas entrelinhas do conto, mas a terceira margem, um lugar tão inexistente quanto acessível, pode ser tomada como um paralelo da situação do arquiteto no Brasil: com os pés distantes da terra, muitas vezes incompreensível para a sociedade que o observa, o projetista navega em um universo paralelo, entre duas margens, remando sem perder de vista o centro e a periferia, os endinheirados e os desfavorecidos, o asfalto e o morro.
Frente a polaridade – que possui dezenas de nuances, responsáveis por bancos de areia que confundem os limites das margens –, novidades no desenho, teoria ou tecnologia não são suficientes para exprimir a vanguarda arquitetônica do país: independente do cliente, programa ou escala, a expressão dos projetos de ponta é pautada pelo gritante desafio de aproximar extremos, que, ao mesmo tempo, se atraem e se repulsam. Mas, na maioria das vezes, é um estímulo mudo, puro silêncio: como não há clara demanda pública ou privada que os convoquem a abeirar as margens, muitos arquitetos com sensibilidade social permanecem trabalhando, quietos, esperando rara oportunidade que brota como um puxadinho dos milhões de metros quadrados construídos anualmente no Brasil. O esforço silencioso de criar pontes que conectem as margens dos extremos nacionais revela a face mais necessária da arquitetura brasileira atual.
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Não dá para incluir a equipe da Loeb Capote Arquitetura e Urbanismo entre aquelas que trabalham em silêncio, esperando uma ocasião favorável para agir: há vinte anos, Roberto Loeb se envolve diretamente em ações sociais, como no Instituto Anchieta (uma ONG que ele preside e que atende cerca de 400 crianças no Grajaú) e na Oficina Boracea (criada na gestão Marta Suplicy para acolher moradores de rua).
O dia-a-dia da equipe liderada por ele e seu sócio Luis Capote, entretanto, é pautado, sobretudo, por projetos para grandes empresas, nacionais e multinacionais, desde locais de produção industriais à centros de distribuição e de pesquisa. Em 2012, enquanto eles criavam um pavilhão de convívio com materiais sustentáveis para a sede administrativa da Bayer, perceberam uma oportunidade de, literalmente, criar uma ponte (1).
A administração da subsidiária brasileira da multinacional de origem alemã ocupa um antigo parque fabril da Schering, no bairro paulistano do Socorro, região onde indústrias dividem espaço com habitações precárias. O terreno da empresa fica em uma espécie de península delimitada pelas fozes dos rios Guarapiranga e Grande, cujo encontro das águas forma o rio Pinheiros. Nas margens opostas a empresa ficam uma estação de metrô e outra de trem, interligadas. Os funcionários que utilizavam o transporte público sobre trilhos, apesar da empresa estar situada a menos de 200 metros das estações, andavam três quilômetros margeando vias expressas inóspitas. Percebendo o problema, os arquitetos sugeriram que a empresa financiasse a construção de uma travessia pública, facilitando o acesso de seus funcionários ao transporte público.
As decisões de desenho e da técnica construtivas da passarela são dignas de nota. Para ser mais confortável para pedestres e ciclistas, por exemplo, os arquitetos optaram por fazê-la baixa, somente a 2,5 metros acima da superfície d’água. Contudo, para não obstruir a navegação de barcaças que desassoreiam o rio, eles criaram um sistema de abertura, com dois braços metálicos móveis que circundam pilares de concreto apoiados no fundo do leito d’água. Pela proximidade de cabos de alta tensão, eles descartaram a estrutura estaiada, tão em voga, mas que nas proximidades da Bayer carregava uma carga negativa: a estação de metrô, estaiada sobre o Pinheiros, se agiganta sobre a estação de trem vizinha – uma obra-prima de João Walter Toscano –, tão desastradamente quanto um mamute acariciando uma joaninha.
O desenho da LoebCapote resultou em uma passarela metálica com 90 metros de comprimento apoiada em pilares de concreto, circundados por anéis com jardins, que, segundo os autores, remetem as plantas aquáticas. Mas, mais importante do que o traço da passarela, batizada de Ponte Friedrich Bayer, são os simbolismos da iniciativa. Trata-se, por exemplo, da primeira conexão de pedestres ao longo do eixo do Pinheiros-Tietê. Além de aproximar a população do rio, contrastando com a ideia dos leitos d’águas urbanos como avenidas sanitárias, a ponte incentiva o uso do transporte público e da bicicleta: por causa dela, a ciclovia nas margens dos rios foi ampliada em três quilômetros e dezenas de ônibus fretados para funcionários da Bayer saíram das ruas. Além de beneficiar diretamente alguns dos 2.500 funcionários da sede da empresa, a passarela é utilizada diariamente por mais de 15 mil habitantes da região. Por fim, ela amplifica a possibilidade de parcerias público-privadas, cada vez mais necessárias em obras de infraestrutura.
Alguns arquitetos brasileiros, tal como o pai no conto de Guimarães Rosa, seguem incompreendidos, aparentemente sem rumo, sem voltar, pois não foram “a nenhuma parte”. Mas eles estão atentos, cientes das distâncias entre as beiras. Navegando entre as escuras duas margens, silenciosos e sérios, Roberto Loeb e Luis Capote provam os benefícios sociais aproximar extremos.
nota
NE – Este texto é desenvolvimento da justificativa de premiação presente na Ata de Premiação APCA 2014, assinada pelos críticos de arquitetura filiados à Associação Paulista de Críticos de Arte. Os prêmios outorgados nas sete categorias – Homenagem pelo conjunto da obra, Fronteiras da arquitetura, Projeto urbano, Urbanidade, Narrativas urbanas, Difusão e Revelação – foram selecionados por unanimidade ou maioria a partir de critérios discutidos coletivamente. A responsabilidade de redação final coube a um determinado crítico, mas os argumentos foram discutidos coletivamente pelos críticos de arquitetura Abilio Guerra, Fernando Serapião, Guilherme Wisnik, Maria Isabel Villac, Mônica Junqueira de Camargo e Nadia Somekh. O crítico Renato Anelli não participou das deliberações finais por conflito de interesse, uma vez que estava em questão um nome de sua relação pessoal. A lista dos artigos referentes aos sete prêmios da Arquitetura é a seguinte:
SOMEKH, Nadia. Prêmio APCA 2014: Cristiano Mascaro. Categoria “Narrativas Urbanas”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.01, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
GUERRA, Abilio. Prêmio APCA 2014: Documentário Bernardes, direção de Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros. Categoria “Difusão”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.02, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2014: Alojamento estudantil na Ciudad del Saber, Panamá – SIC Arquitetura. Categoria “Revelação”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.03, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2014: Reurbanização da favela do Sapé – Base 3 Arquitetos. Categoria “Urbanidade”, modalidade “Arquitetura e Urbanismo”. Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.04, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2014: "Maneiras de expor: a arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi", curadoria de Giancarlo Latorraca, MCB. Categoria “Fronteiras da arquitetura”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.07, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
SERAPIÃO, Fernando. Prêmio APCA 2014: Ponte Bayer, passarela móvel sobre o canal Guarapiranga – Loeb Capote Arquitetura e Urbanismo. Categoria “Projeto urbano”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.08, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
1
PORTAL VITRUVIUS. Bayer – Passarela sobre o Canal Guarapiranga. Ponte para pedestres e ciclistas com jardim suspenso. Projetos, São Paulo, ano 15, n. 170.02, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
sobre o autor
Fernando Serapião é crítico de arquitetura e editor da revista Monolito.