Viajar, sabemos, não é dado a todos
Sergio Cardoso, "O olhar viajante (do etnólogo)"
Dentre as celebrações do centenário de Lina Bo Bardi, a mostra "Maneiras de expor: a arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi", no Museu da Casa Brasileira, entre 19 de agosto e 9 de novembro de 2014 e com curadoria de Giancarlo Latorraca, foi a melhor homenagem à sensibilidade da arquiteta. A primeira anotação diz respeito à documentação exposta: desenhos, cartazes e fotos originais de exposições realizadas por Lina Bo Bardi, 6 exemplares dos cavaletes de vidro, o suporte de textos selecionados para conduzir a leitura das imagens e dos desenhos, com trechos das apresentações e anotações, da própria Lina Bo Bardi, e a mostra de cinco entrevistas em vídeo com depoimentos de Alexandre Wollner, André Vainer, Edmar de Almeida, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki que colaboraram com a arquiteta, assim como três projeções de filmes de época referentes às exposições escolhidas para exemplificar o trabalho da arquiteta.
A segunda anotação é a maneira como a curadoria privilegiou o que Giancarlo Latorraca assinala como singularidade da maneira de expor da arquiteta, na qual, “Apresentações de acervos, coleções e mostras temporárias de Lina Bo Bardi expuseram arte antiga, moderna, popular, objetos arqueológicos, esculturas, objetos industrializados; cultura material e imaterial. Organizadas em arranjos intrigantes e misturando criticamente o conceito entre essas categorias, suas mostras visavam sempre à experiência do observador, buscando surpreendê-lo, convidando-o a interagir através da evocação dos sentidos” (1). Para pontuar esta singularidade, a mostra espacializou roteiros que transformam as salas do MCB em possibilidade de aproximação às exposições “Caipiras, capiaus: pau-a-pique”, “Bahia no Ibirapuera”, e às pinacotecas do MASP 7 de abril e Masp Paulista.
Como habitante de fronteiras, Lina recusou a linearidade do tempo enquanto contínuo homogêneo. O tempo, que “encontramos na linha do presente, no devir constitutivo de seu próprio sentido” (2), faz com-viver e aceita a liberdade de escolha para incentivar a narrativa e o envolvimento corporal pleno. Para Lina “o tempo linear é uma invenção do Ocidente; o tempo não é "linear", mas é um maravilhoso emaranhado no qual, a cada momento, "questões" podem ser escolhidas e as soluções inventadas, sem haver um princípio e um fim” (3).
A temporalidade, para Lina, é sempre contemporânea e uma abertura à alteridade. Uma experiência que faz compreender que o "estrangeiro" “está prefigurado no sentido aberto do nosso próprio mundo”, delineado “nas brechas da nossa identidade, na trilha aberta por nossa própria indeterminação” (4). E é nesse raciocínio e sentimento do tempo que diálogos amigáveis e afinidades na ironia e em um projeto personalizado por questões culturais intrínsecas, que Itália e Brasil conversam nas obras da arquiteta.
Para o curador, “Lina Bo Bardi apresentou o Brasil para os brasileiros” (5). Creio que também surpreendeu os italianos que, com ela, puderam entender o popular como aquela produção que não conheceu o conceito do Belo tão caro à civilização ocidental, mas como estética que reivindica o "direito ao bruto". Um ensinamento que rendeu homenagens a Lina Bo Bardi com duas exposições antológicas preparadas por Luciano Semerani, Antonella Gallo e Giovanni Marras, da Escola de Veneza – IUAV -, em 2004, no Museo d’Arte Moderna di Ca’Pesaro, em Veneza e, em 2006, no Museu de Arte de São Paulo – Masp (6).
As opções da curadoria colaboraram para o entendimento da arquiteta Lina Bo Bardi como uma habitante de fronteiras culturais. A escolha do tema da exposição é de grande interesse, pois privilegiou o "olhar" sobre o modo de exposição, sobre aquilo que se exibe enquanto entendimento do valor e significado da cultura no trabalho da arquiteta. Entende que não há que pontuar uma "visão de mundo", mas um olhar que interroga, perscruta, escava. Necessitado, inquieto e inquiridor, o olhar, como afirma Sergio Cardoso ao compreender Merleau-Ponty, “não descansa sobre a passagem contínua de um espaço inteiramente articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões descontínuas, desconcertadas pelo estranhamento” (7).
A exposição, neste sentido, é bastante didática e multifacetada, e teve como característica apresentar algumas das localidades de aprendizagem, digamos assim, pelas quais Lina passou: a cultura baiana, o dia-a-dia do caipira, a arte erudita. O legado de uma “maneira de expor” objetos em convivência, de barro, de latão, de ferro, de plástico que inaugura lugares de contaminação da cultura popular de autêntica estirpe e o design para a cultura de massa. E o entendimento que a arte está na vida. Um “humanismo” que assinala a forma de aventura e os temas do homem comum; a vida cotidiana e não episódica.
Livre do olhar colonizado que prende e atrasa uma conduta emancipada, Lina Bardi escapou da divisão entre culturas e é possível que jamais tenha entendido esta separação e contraste entre centro e periferia dando valor ao que cada especificidade da cultura relevava como modus vivendi.
A exposição, premiada pela APCA como “fronteiras da arquitetura”, abre alguns percursos que marcaram a trajetória da arquiteta e a construção peculiar de seu olhar como viajante de vários tempos e culturas. Uma valiosa experiência curatorial que considera que “Viajar, sabemos, não é dado a todos”.
notas
NE – Este texto é desenvolvimento da justificativa de premiação presente na Ata de Premiação APCA 2014, assinada pelos críticos de arquitetura filiados à Associação Paulista de Críticos de Arte. Os prêmios outorgados nas sete categorias – Homenagem pelo conjunto da obra, Fronteiras da arquitetura, Projeto urbano, Urbanidade, Narrativas urbanas, Difusão e Revelação – foram selecionados por unanimidade ou maioria a partir de critérios discutidos coletivamente. A responsabilidade de redação final coube a um determinado crítico, mas os argumentos foram discutidos coletivamente pelos críticos de arquitetura Abilio Guerra, Fernando Serapião, Guilherme Wisnik, Maria Isabel Villac, Mônica Junqueira de Camargo e Nadia Somekh. O crítico Renato Anelli não participou das deliberações finais por conflito de interesse, uma vez que estava em questão um nome de sua relação pessoal. A lista dos artigos referentes aos sete prêmios da Arquitetura é a seguinte:
SOMEKH, Nadia. Prêmio APCA 2014: Cristiano Mascaro. Categoria “Narrativas Urbanas”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.01, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
GUERRA, Abilio. Prêmio APCA 2014: Documentário Bernardes, direção de Gustavo Gama Rodrigues e Paulo de Barros. Categoria “Difusão”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.02, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2014: Alojamento estudantil na Ciudad del Saber, Panamá – SIC Arquitetura. Categoria “Revelação”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.03, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2014: Reurbanização da favela do Sapé – Base 3 Arquitetos. Categoria “Urbanidade”, modalidade “Arquitetura e Urbanismo”. Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.04, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2014: "Maneiras de expor: a arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi", curadoria de Giancarlo Latorraca, MCB. Categoria “Fronteiras da arquitetura”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.07, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
SERAPIÃO, Fernando. Prêmio APCA 2014: Ponte Bayer, passarela móvel sobre o canal Guarapiranga – Loeb Capote Arquitetura e Urbanismo. Categoria “Projeto urbano”, modalidade "Arquitetura e Urbanismo". Drops, São Paulo, ano 15, n. 089.08, Vitruvius, fev. 2015 <www.vitruvius.com.br>.
1
LATORRACA, Giancarlo. Maneiras de expor: arquitetura expositiva de Lina Bo Bardi. Catálogo exposição, curadoria de Giancarlo Latorraca. São Paulo, Museu da Casa Brasileira, 2014, p. 11.
2
CARDOSO, Sérgio. O olhar viajante (do etnólogo). In: NOVAES, Adauto (Org.). O olhar. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 357.
3
BARDI, Lina Bo. Notas pessoais. In: FERRAZ, Marcelo (Org.). Lina Bo Bardi. São Paulo/Milão, Instituto Bardi/Charta, 1994, p. 327.
4
CARDOSO, Sérgio. Op. cit., p. 360.
5
LATORRACA, Giancarlo. Op. cit., p. 12.
6
A documentação de ambas as exposições está disponível. Ver: SEMERANI, Luciano; GALLO, Antonella. Lina Bo Bardi. Il diritto al brutto e il SESC – fábrica da Pompéia. Coleção Teca, n. 7. Napoli, Clean, 2012.
7
CARDOSO, Sérgio. Op. cit., p. 349.
sobre a autora
Maria Isabel Villac é arquiteta, professora e pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Mackenzie.