"Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. Mas qual é a pedra que sustenta a ponte, pergunta Kublai Khan. A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra, mas pela curvatura do arco que elas formam – responde Marco Polo. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: por que falar em pedras se só o arco me interessa! Marco Polo responde: – sem as pedras o arco não existe"
Cidades invisíveis, Ítalo Calvino
Hoje não pretendo falar de arquitetura ou de urbanismo. Diante do grave momento que estamos vivendo parece mais adequado refletir sobre outras questões que fazem parte do nosso cotidiano. Alguns fatos recentes mostram que depois de consumada a desgraça não adianta chorar o leite derramado. Refiro-me não apenas ao recente desastre ecológico envolvendo o Rio Doce, mas, sobretudo, à lama que, em seu sentido figurado, escorre por todos os cantos deste país.
Não há como negar certa passividade da nossa sociedade frente às denúncias de corrupção veiculadas diariamente nos meios de comunicação. Principalmente, diante do cinismo da corja de bandidos responsável pela maioria das desgraças que ora estamos vivenciando. Graças às investigações sigilosas e à ágil ação de alguns setores da nossa justiça, felizmente, alguns desses malfeitores saíram de cena. Políticos aparentemente respeitáveis, empresários admirados pela sua eficiência e funcionários públicos espertalhões, hoje, cumprem penas sem desfrutar dos seus antigos e costumeiros privilégios.
Resta-nos, no entanto, o consolo de ver que a nossa jovem democracia veio para ficar. Neste momento de tantas incertezas pelo menos uma certeza se tornou evidente: como é difícil conviver com gente que menospreza valores éticos e se impõe pela arrogância e pela prepotência, especialmente, quando incensados pela poder da grana acumulada de maneira desonesta.
Também tem sido difícil interagir com indivíduos que tentam, por todos os meios, impor as suas convicções políticas e ideológicas. Quando o assunto extrapola para a religião a situação se complica ainda mais. Geralmente, nesses casos, prevalece a hipocrisia e os moralismos retrógrados daqueles que se deleitam ao falar mal da vida alheia. Chega de obscurantismos e fundamentalismos de qualquer espécie.
Apesar de este ter sido um ano repleto de frustrações não dá para ficar paralisado assistindo a banda passar. Há que se ter a convicção de que a velha esperança não se desfaz diante de qualquer frustração. Sabemos que a vida se expressa em ciclos contínuos e sucessivos onde o livre arbítrio costuma ser o fiel da balança. Portanto, refletir sobre o presente e sobre o passado em busca de algo que ajude a construir um futuro auspicioso parece ser o caminho mais adequado.
Tenho a convicção de que os atuais modelos de desenvolvimento econômico não tardarão a ser superados por novos paradigmas baseados em valores mais humanos e mais consistentes. O pragmatismo de resultados imediatos não pode prevalecer indefinidamente. Resta-nos, portanto, a esperança de ver construído um projeto de vida onde homens e mulheres, crianças e velhos, ricos e pobres, patrões e empregados, sem exceção, percebam que vivem em um mesmo planeta e possuem a mesma materialidade. Quando a humanidade compactuar com esses princípios, certamente, assistiremos uma maior valorização dos aspectos humanísticos e teremos a solidariedade como principal catalisador desse processo.
Em tempo de início de um novo ano não dá pra ficar de braços cruzados. Vamos em frente enquanto há tempo. Um próspero Ano Novo para todos!
nota
NE
Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. Na expectativa de um novo ano. O Globo, Rio de Janeiro, 19 dez. 2015.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.