Vivemos um momento no qual a cultura digital tem permitido conexões antes inimagináveis. Tem aberto as portas para um novo paradigma de construção colaborativa e dos processos e mudanças sociais consequentes, mediante a participação direta da cidadania e de grupos antes excluídos destes processos. Trata-se de uma transformação da cultura do download para a cultura do upload (1). Dentro deste espírito da época aconteceu, em novembro passado, no Rio de Janeiro, o segundo Laboratório Ibero-americano de Inovação Cidadã – Labic, no qual tive o prazer de participar, como colaborador no projeto Praça, Instruções de uso, que procurava a ativação de espaços públicos por meio do jogo e de materiais residuais. A seguir se expõem algumas reflexões ao redor do evento.
O projeto foi parte do Cidadania 2.0 (2), coordenado pela Secretaria Geral Ibero-americana – Segib, cuja missão é fomentar a inovação cidadã no espaço ibero-americano. Aplicada ao âmbito da cidadania e, segundo o material disponível no website de Cidadania 2.0 (3), a inovação cidadã tem sua base em iniciativas que, criadas coletivamente, desenvolvam metodologias e técnicas inovadoras para a busca de soluções para problemas sociais, envolvendo ativamente a cidadania nos processos e procurando fomentar a inclusão social. Sua matéria prima é o "novo cidadão", um participante ativo, tanto como coprodutor, como destinatário de estas iniciativas, e a sua principal ferramenta são as tecnologias da informação e da comunicação, como médio facilitador do trabalho colaborativo.
Uma maneira de materializar essas intenções são os laboratórios cidadãos. O formato do Laboratório Ibero-americano de Inovação Cidadã no Rio de Janeiro reuniu doze projetos, cada um com seu promotor, e doze equipes de colaboradores para seu desenvolvimento, durante duas semanas. O cenário específico foi o icónico Palácio Gustavo Capanema, desenho inovador no seu momento, onde, em meio de paneis do pintor Candido Portinari, dispuseram-se as doze mesas correspondentes às equipes. Uma das bases da ideia de inovação cidadã é a de interdisciplinaridade e a da diversidade de origens e formações da cidadania ativa. Por tanto, os doze projetos enfocavam-se temas tão diversos como a identificação de focos de dengue, a sensibilização de dados através da realidade virtual ou aumentada, a criação de redes de comunicação livres (internet) e de rádios comunitárias, ou o mencionado acima. Igualmente diversas eram as origens dos participantes, que provinham de todo o âmbito ibero-americano. Desde o começo impulsou-se a interação e a colaboração entre as equipes, e nela foi fundamental uma equipe de organizadores e mediadores. Assim, ao final das duas semanas de intensa atividade e da conatural criação de redes, apresentaram-se os resultados dos projetos, com a presença do ministro da cultura do Brasil, Juca Ferreira, e da Rebeca Grynspan, secretária Geral da Segib. Suas palavras no momento do fechamento refletem o espírito do evento e da ideia de inovação cidadã promovida em ele, ao ressaltar a importância do fomento das iniciativas “desde a base”, e, ainda, ao questionar-se o modo como as suas próprias instituições vinham desenvolvendo políticas e programas ao respeito.
Agora, um evento como este, e as experiências e reflexões que suscita, permitem destilar uma serie de ensinamentos e provocam comentários que valem a pena fazer neste momento. Em primeiro lugar é pertinente falar da maior importância do processo, sobre a do produto terminado, já que, em um formato de laboratório, ainda quando o produto pode resolver uma situação específica, o processo é replicável e adaptável a diversas condições, e é ali onde reside o grande valor da aprendizagem. Evidentemente, cada equipe chegou a um resultado que, em maior ou menor medida, se ajustou as expetativas e aos objetivos iniciais e essa meta foi a guia do trabalho dos colaboradores e promotores. Porém, o valor real do conhecimento adquirido e começa a evidenciar-se depois do Labic, na proliferação e sistematização desse tipo de iniciativas nos diferentes contextos dos participantes e na continuidade que podem ter os projetos trabalhados. É, portanto, aqui que o valor do processo se mostra, pois fornece as ferramentas e capacidades para enfrentar e superar de forma colaborativa diferentes obstáculos em diferentes contextos. Um exemplo dessa continuidade pode ser visto no projeto Sinergia da diversidade Ibero-americana, no qual procurava-se elaborar uma metodologia para a análise das dinâmicas que se geram em um ambiente de criação colaborativa e desenvolver um processo de análise que qualquer pessoa pudesse aplicar. A equipe recolheu dados e desenvolveu metodologias, mas a análise desses resultados segue em processo, a partir do contexto de cada participante. Igualmente, nas palavras do documento do Cidadania 2.0 sobre os laboratórios cidadãos (4) e também de Felipe González – integrante da equipe de moderadores – seu potencial reside na expansão desse conhecimento para outros âmbitos da cidade e da sociedade. Em atravessar os limites do Laboratório, para receber e compartilhar experiências e reflexões. E aqui o conhecimento do processo e das suas metodologias e possibilidades, sempre flexíveis, é fundamental. No projeto Praça, Instruções de Uso, promovido pelo Miguel Rodríguez do coletivo Basurama (5), por exemplo, a equipe enfrentou múltiplas dificuldades e momentos de crise, da falta de materiais à ausência de relação com um agente local que ajudasse na gestão da intervenção. É na aprendizagem, na superação ou reinterpretação de esses obstáculos, através de roteiros pela cidade, mapeamentos, elaboração de manuais, sessões colaborativas e outras ações (6), que está boa parte da inovação do processo. O resultado pode ser muito diverso, assim como são diversas as circunstancias e possibilidades que se apresentem ao procurarmos intervir nos espaços públicos de uma cidade como o Rio de Janeiro.
Esse tipo de evento e processo só é possível graças ao trabalho conjunto de uma série de instituições (neste caso a Segib, o Medialab Prado, o Ministério da Cultura do Brasil, entre outros) e sua aproximação a um contexto e a uma cidadania específicos. É nesse ponto que reside outro dos importantes ensinamentos da experiência do Labic: essa aproximação entre as instituições e a cidadania; entre iniciativas “vindas de cima” e “vindas de baixo” – ou, em palavras do Michel de Certeau, entre a estratégia e prática (7). O reconhecimento do valor das iniciativas cidadãs pela parte das instituições é fundamental para a inovação cidadã e para a inclusão social que esta procura. Se a mentalidade hacker que predomina nos laboratórios cidadãos é reconhecida pelas instituições – o que foi parte da proposta do Juca Ferreira na sua intervenção no fechamento do Labic – a capacidade criativa e colaborativa da cidadania será potenciada, e será possível traduzir propostas deste tipo em políticas públicas para o fomento da inovação cidadã. Cuida-se para que as iniciativas cidadãs trabalhem não só, e não sempre, a partir da resistência, a partir da oposição, com recursos mínimos, mas sim de procurar um modo onde as instituições se coloquem ao lado de tais iniciativas e as impulsem, como fala e tem feito Gabriel Visconti, participante do Labic e parte da equipe do projeto Espacios de Paz, que trabalha na intervenção e ativação de espaços em desuso em comunidades vulneráveis de Caracas e outras cidades venezuelanas, por meio de processos participativos (8).
Frases e intercâmbios de opiniões como esta são exemplos de um terceiro tema importante na experiência dos laboratórios cidadãos, que forma parte da sua essência. As relações, conexões, os contatos e redes que se constroem em um reduzido, porém intenso, espaço temporal como no caso, são um reflexo da importância desse contato direto, cara a cara, na construção de conhecimento coletivo. É verdadeiro e claro que as tecnologias da informação e da comunicação permitem trabalhar à distância de modo efetivo e construir conhecimento através das redes, mas a qualidade desse contato não pode comparar-se com as relações que se constroem em um âmbito como o de um laboratório cidadão. Os documentos colaborativos de Cidadania 2.0 reconhecem isto claramente, ao falar de “uma atmosfera de trabalho pensada especialmente para o encontro, a cooperação e o intercambio, onde há lugar para a vida e os afetos; o valor do informal e da proximidade” (9). Em duas semanas, com seus dias de trabalho, com a intensa atividade noturna que oferece o Rio de Janeiro e as suas noites de samba, chorinho, roteiros através dos bairros diversos, visitas a comunidades, dias de praia, acontecem relações sociais que só o contato direto permite. Isto, somado à diversidade dos participantes, se constitui como a semente de futuras amplas redes colaborativas de relações professionais e pessoais, algo de valor inestimável no mundo de hoje.
Certamente, como toda atividade experimental, esses laboratórios são parte de um processo e o seu formato pode ser questionado. É importante mencionar, por exemplo, que em alguns casos faltou gestão previa ao evento, para efetuar conexões e contatos mais eficientes com as comunidades que poderiam beneficiar-se dos projetos. Mas, de novo, tenho que insistir, estas dificuldades foram pretextos para que as equipes procurassem outras formas criativas para desenvolver seus projetos e fortalecer o processo. Poder-se-ia dizer, também, que, ainda que a organização tenha procurado incluir diversos participantes do Rio de Janeiro (aproximadamente 50% dos mais de 100 participantes eram brasileiros), boa parte da produção e dos processos poderiam ter sido desenvolvidos (e ficado) dentro do espaço do Palácio Capanema. Porém as equipes e a organização souberam reconhecer e aproveitar esta carência durante o laboratório, procurando expandir as fronteiras do evento para a cidade e receber dela tudo o que fosse possível. Contudo, é importante reconhecer o valor da existência deste tipo de evento, impulsado pelas instituições, mas com uma forte mentalidade bottom up, em nosso contexto ibero-americano.
Em um curto, mas denso post em um blog do El País, Raúl Olivan fala das cidades como “grandes repositórios de abundancia desaproveitada”, mas que, em um contexto como o das práticas colaborativas e da cidadania em rede, pode ser utilizada para subverter a lógica capitalista da competitividade e estabelecer uma dinâmica redistributiva (10). A valorização e a disseminação de iniciativas cidadãs inovadoras, surgidas ou não de contextos como os laboratórios cidadãos, são uma ferramenta fundamental para isso, ainda mais em no contexto Ibero-americano onde, sem dúvida, existe uma enorme fonte, ainda na sua maioria não reconhecida, de ações cidadãs espontâneas e tremendamente inovadoras. Está nas mãos de todos nós continuarmos o processo.
notas
1
CIUDADANIA 2.0. Documento colaborativo Innovación ciudadana en Iberoamérica. Web principal de Ciudadanía 2.0. Agosto de 2013. Consultado em 29 dezembro de 2015. <http://ciudadania20.org/innovaciudadana/>.
2
Para mais informações, ver: <http://www.ciudadania20.org/>.
3
CIUDADANIA 2.0. Documento colaborativo Laboratorios Ciudadanos: espacios para la innovación ciudadana. 6 dezembro de 2014, p. 1. Consultado em 29 dezembro de 2015. <http://www.ciudadania20.org/wp-content/uploads/2014/12/Documento-Colaborativo_LabsCiudadanos.pdf>
4
Idem, ibidem, p. 6.
5
Para mais informações sobre Basurama, ver: <http://basurama.org/>.
6
Para mais informações sobre o projeto ‘Praça’, ver: <https://www.facebook.com/plazas.instrucciones/?fref=ts>.
7
Para mais informações sobre o tema, consultar o artigo: MEDINA, Paula Abal. Kairos – Revista de Temas Sociales, año 1, n. 20, Universidad Nacional de San Luis, nov. 2007 <www.revistakairos.org/k20-archivos/abalmedina.pdf>.
8
Para mais informações sobre Espacios de Paz, ver: <http://www.archdaily.co/co/tag/espacios-de-paz-2015>.
9
CIUDADANIA 2.0. Documento colaborativo ‘Laboratorios Ciudadanos: espacios para la innovación ciudadana.’ Página 7. 6 dezembro de 2014. Consultado em 29 dezembro de 2015 <www.ciudadania20.org/wp-content/uploads/2014/12/Documento-Colaborativo_LabsCiudadanos.pdf>.
10
OLIVAN, Raúl. Las ciudades como grandes repositorios de abundancia. Blog Alternativas, El País. 07 dezembro de 2015. Consultado em 29 dezembro de 2015. <http://blogs.elpais.com/alternativas/2015/12/las-ciudades-como-grandes-repositorios-de-abundancia.html>.
sobre o autor
Simón Fique é arquiteto formado na Universidade Nacional de Bogotá, sócio fundador do Ensamble AI, escritório de arquitetura e urbanismo que desenvolve projetos em diferentes campos desde 2012 e parte da equipe que venceu o Prêmio Corona Pro Habitat 2015. Estudou na ETSAM de Madrid e tem especial interesse pelos fenômenos urbanos e as práticas colaborativas. É autor do TFG “Revitalização de limite urbano, a Calle 26 em Bogotá”, desenvolvido em conjunto com Lorena Rubiano.