É interessante como, do ponto de vista da língua que falamos diariamente, em Portugal como no Brasil, vamos sexualizando coisas insexuadas do mundo, Em nosso vocabulário, 'casa' e 'cidade', por exemplo, são palavras femininas. Coisas fêmeas. Não temos um artigo neutro, como o 'tò' da antiga língua grega ou o 'das' alemão. Sexualizamos tudo. Coisa alguma aparece, no horizonte da língua portuguesa, desprovida de sexo.
Em sua Estilística da língua portuguesa, Rodrigues Lapa se sentiu obrigado a "acentuar, tratando-se do gênero, uma das características do português: a constante preocupação sexual que se verifica no vocabulário". Não se trata apenas de dividir o mundo (que é masculino, diversamente da Terra, que é fêmea) por um prisma sexualizante geral. Falamos uma língua que, além de desconhecer a neutralidade sexual, avança um pouco mais no detalhe, criando supostos casais linguísticos.
"É natural que os animais se dividam quanto ao sexo: cão – cadela, leão – leoa, etc. A própria configuração do macho e da fêmea torna necessária a distinção morfológica. Mas o que é mais curioso é que essa mesma tendência se verifique nos objetos, nos seres insexuados. A par do masculino, a língua criou formas femininas num sem-número de substantivos: saco – saca, poço – poça, barco – barca, barraco – barraca, cesto – cesta, etc.", escreve Lapa.
Mas o que me interessa, aqui, é assinalar o gênero feminino de ‘casa’ e ‘cidade’. Porque, entre nós, fazer casa e fazer cidade nunca foram coisas de mulher. Hoje, vemos mulheres operando máquinas pesadas no setor da construção civil. Mas isso é coisa que faz muito pouco tempo. Nunca tais atividades construtivas constavam de qualquer rol dos fazeres femininos. A “rainha do lar” nunca foi mestre de obra. Historicamente, no Brasil como em todo o mundo, mulheres e construções foram entidades apartadas. Uma nunca eram feitas pelas outras.
À mulher, cabia habitar. Construir, não. E menos ainda conceber o que deveria ser um templo público ou uma habitação particular. O seu direito de povoar se resumia ao lá dentro, ao espaço interior, onde, às vezes, poderiam ter permissão para desatar alguma fantasia decorativa. Mulheres não definiam alicerces. Não estabeleciam paredes. Nem desenhavam fachadas. Limitavam-se a habitar o ambiente previamente delimitado, riscado e construído. A aceitar desenhos e prédios masculinos.
E a palavra ‘pedreira’, aliás, em nossos dicionários, não designa mulher que opere em obras de pedra e cal, ou de tijolos, mas um lugar de onde se extrai pedra.
sobre o autor
Antonio Riserio é antropólogo, poeta, ensaísta e historiador.