Desenho e resiliência
O prêmio concedido a Sérgio Ferro não pretende reparar injustiças históricas. Elas existiram, estão em aberto e quem sabe um dia as enfrentaremos – a essas e a tantas outras que o regime de exceção desferiu sobre sociedade brasileira. Se não o fizemos nos últimos anos, esse desafio parece agora ainda mais longe no horizonte: adentramos, ao que tudo indica, em um ciclo renovado de autoritarismo. Assim, o prêmio se impõe como uma necessária rememoração do risco permanente de retrocesso.
O ano de 1972 marca o início de seu exílio na França, que se desdobrará na experiência como professor na Escola de Arquitetura de Grenoble. Ao longo desses mais de quarenta anos que se passaram desde então, sua obra tem sido publicada e discutida no Brasil. Nos anos 1980 e 1990, seus textos corriam em cópias amarrotadas de mão em mão, em edições raras. Hoje circulam com mais facilidade, em edições cuidadosas, análises críticas, resenhas etc. O pensamento de Sérgio Ferro nunca deixou de ser discutido, pelo menos no ambiente da FAUUSP, endereço certo dos conflitos biográficos e bibliográficos que sua atuação como aluno e professor provocou.
Foi a arquitetura o centro de suas preocupações durante os primeiros anos de formação e atuação. Profissional arquiteto e militante político, teve a rara experiência de uma prática crítica e intelectualmente orientada. Suas teses posteriores se fundariam nesse intransferível conhecimento arquitetônico, no qual não se separavam desenho e reflexão. A arquitetura brasileira foi o material que lhe proporcionou uma abrangente compreensão do processo social brasileiro e das agruras do subdesenvolvimento. A sua experiência na construção de Brasília trouxe à tona um conflito entendido como estruturante da formação brasileira: a convivência do arrojo da arquitetura moderna em versão local com a realidade brutal do trabalho no canteiro. A associação entre a desenvoltura das formas, marca fundamental de nossa criativa especificidade arquitetônica, e sua irracionalidade construtiva e social, foi provavelmente um dos mais importantes desfechos críticos do ciclo heroico de nossa arquitetura moderna. O que o sucedeu – sua crise disciplinar e ideológica irreversível – indicava que o esforço da forma livre não levaria ao trabalho livre, revelando-se, antes, o seu oposto. Sérgio Ferro teve a oportunidade de desenvolver e atualizar essa reflexão no ensaio Arquitetura nova, publicado no ano de 1967, raro exercício de análise estética materialista de nossa produção arquitetônica.
Mas a conjuntura social se estreitava, e as diversas formas de conhecimento crítico que o país desenvolvera colidiam em direção à urgência da ação. O pensamento de Sérgio Ferro também se ampliava, como método e destino, para além da crítica arquitetônica, alcançando a sociologia e a economia.
Esses tempos de desentendimento sobrepuseram dois aspectos do trabalho do arquiteto, o que provocou uma cisão no ambiente profissional e acadêmico. Sua crítica radical da arquitetura brasileira desvendava os processos de sua produção social. O desenho, o projeto, eram elementos fundamentais da divisão do trabalho no canteiro, em especial, no canteiro do subdesenvolvimento.
A radicalidade de sua crítica, válida para a conjuntura ampliada do ciclo desenvolvimentista do país, foi comprimida no imediato político que o levou à clandestinidade. Não era possível debater – existir – publicamente, o que impedia uma atuação profissional crítica, segundo os imperativos éticos desse arquiteto. Era inconcebível o “projeto” na impossibilidade da crítica abrangente.
A aceleração dos acontecimentos fez com que a crítica social e arquitetônica, de validade abrangente, fosse modulada pelas circunstâncias politicamente radicais da revanche do regime militar. A mais importante dissensão da história da FAUUSP, que em grande medida configurou seu destino acadêmico, deveu-se a superinterpretações da desinteligência desses tempos sombrios.
Na França, Sérgio Ferro pôde desenvolver em outras frentes seus estudos sobre o trabalho livre. O seu O canteiro e o desenho entrou no debate acadêmico e profissional brasileiro para gerar frutos nos mais diferentes campos do conhecimento.
Mas é sobretudo entre os estudantes e os jovens arquitetos que essas reflexões críticas perduram com vivacidade. Ininterruptamente. Essa continuidade, que indica que algo radical na realidade brasileira persiste e pode ser mais bem-compreendido por meio dessas reflexões, é o que motivou a premiação. O termo “trajetória” procura resumir, ainda que não precisamente, o vigor sempre renovado dessa obra em parcela importante do pensamento crítico nacional.
nota
NE – O número especial da revista Drops dedicado à premiação da modalidade Arquitetura e Urbanismo da APCA conta com os seguintes artigos:
GUERRA, Abilio. Arquitetura e Urbanismo na premiação da Associação Paulista de Críticos de Arte. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.01, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6488>.
RECAMÁN, Luiz. Prêmio APCA 2016: Sergio Ferro. Categoria “Trajetória". Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.02, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6489>.
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2016: Projeto Ruas Abertas – Avenida Paulista / Fernando Haddad. Categoria “Urbanidade”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.03, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6490>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2016: Escola Senai São Caetano do Sul / Claudia Nucci e Valério Pietraróia – NPC Grupo Arquitetura. Categoria “Obra de Arquitetura”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.04, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6491>.
SEGAWA, Hugo. Prêmio APCA 2016: Luciano Brito Galeria – antiga Residência Castor Delgado Perez / Piratininga Arquitetos e outros. Categoria “Preservação de Patrimônio Moderno”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.05, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6492>.
KOGAN, Gabriel. Prêmio APCA 2016: Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores / Tuca Vieira. Categoria “Pesquisa”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.06, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6493>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2016: Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos / Fernando Meirelles, Daniela Thomas e Andrucha Waddington. Categoria “Fronteiras da Arquitetura”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.07, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6494>.
PERROTTA-BOSCH, Francesco. Prêmio APCA 2016: Ocupação Hotel Cambridge / Carmen Silva, Pitchou Luambo, Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn. Categoria “Apropriação Urbana”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.08, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6495>.
sobre o autor
Luiz Recamán é arquiteto e professor na FAU USP.