Conquista do coletivo
Até pouco tempo atrás, quando a cultura de uso dos espaços públicos em São Paulo ainda era uma quimera, o fluxo de automóveis era interrompido no Minhocão – à noite e aos domingos – e se costumava dizer que ele estava fechado. Hoje, quando o mesmo ocorre com o Minhocão, a avenida Paulista e com uma série de outras ruas e avenidas da cidade contempladas pelo programa Ruas Abertas, o cidadão paulistano diz, com orgulho, que elas estão abertas. Abertas para o uso das pessoas. Trata-se de uma importantíssima mudança cultural, fomentada durante os quatro anos da gestão de Fernando Haddad à frente da prefeitura de São Paulo.
Vivemos um momento, no mundo, em que a parte mais significativa das mudanças no modo de se usarem os espaços públicos nas grandes cidades provém de ações da sociedade civil, e não do Estado. São as “jornadas”, “primaveras” e movimentos de “ocupações”, que têm tomado as ruas e as praças de inúmeras metrópoles do mundo, com resultados muitas vezes expressivos do ponto de vista político. Assim, as várias ações públicas que a gestão Haddad realizou, no sentido de melhor qualificar a “urbanidade” de São Paulo, ganham ainda mais relevância. São feitos que entraram em ressonância com muitos dos anseios mais progressistas que vieram das ruas.
O ex-prefeito produziu ações que não manipulam betoneiras, e sim leis, atuando sobre as formas de uso da cidade (1). Trata-se de um político de um tipo novo no Brasil, com uma visão urbana estratégica e cirúrgica. Com muito poucos recursos à mão, criou não apenas faixas exclusivas de ônibus e de bicicletas, mas também linhas de ônibus noturnos, praças com wi-fi livre e “ruas abertas”. Isto é, produziu uma cidade com novos valores, orientada pelos interesses coletivos e pela ética do compartilhamento.
As medidas urbanas de Haddad afrontaram a tradicional cultura paulistana do cidadão entendido como um sujeito motorizado, blindado e ávido pelo consumo. Claramente, é possível identificar uma outra visão de cidadania em muitos de seus programas, tal como o “Ruas Abertas”, que abriu aos domingos e feriados 29 vias da cidade (em diferentes regiões) para o uso de ciclistas e pedestres, permitindo manifestações artísticas, culturais e esportivas, mediante pactuação com as subprefeituras locais. Acostumado historicamente a se proteger da cidade em redutos privados, o paulistano passou a ter cada vez mais prazer em estar nas ruas, nas calçadas e nas praças, ainda que elas deixem muito a desejar. Não é por acaso que o carnaval de rua cresceu tanto em São Paulo. E, em geral, de uma maneira bela, generosa, fraterna, erótica. Desreprimindo o hedonismo, a cidade foi deixando, pouco a pouco, de ter a sua imagem associada à sina da “dura poesia concreta de suas esquinas”.
A marca mais importante da gestão de Haddad em São Paulo parece ter sido o protagonismo que ele deu ao urbanismo como meio de leitura integradora do complexo tecido social no espaço conflituoso da cidade. Um urbanismo que não privilegiou grandes obras de infraestrutura viária, como pontes e túneis, mas entendeu os fluxos e redes da cidade e procurou integrá-los nas diferentes escalas da metrópole, dando ênfase ao homem comum. Desse ponto de vista, a avenida Paulista aberta é um dos seus maiores símbolos. E, também, um dos seus mais importantes legados.
nota
NE – O número especial da revista Drops dedicado à premiação da modalidade Arquitetura e Urbanismo da APCA conta com os seguintes artigos:
GUERRA, Abilio. Arquitetura e Urbanismo na premiação da Associação Paulista de Críticos de Arte. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.01, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6488>.
RECAMÁN, Luiz. Prêmio APCA 2016: Sergio Ferro. Categoria “Trajetória". Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.02, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6489>.
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2016: Projeto Ruas Abertas – Avenida Paulista / Fernando Haddad. Categoria “Urbanidade”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.03, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6490>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2016: Escola Senai São Caetano do Sul / Claudia Nucci e Valério Pietraróia – NPC Grupo Arquitetura. Categoria “Obra de Arquitetura”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.04, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6491>.
SEGAWA, Hugo. Prêmio APCA 2016: Luciano Brito Galeria – antiga Residência Castor Delgado Perez / Piratininga Arquitetos e outros. Categoria “Preservação de Patrimônio Moderno”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.05, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6492>.
KOGAN, Gabriel. Prêmio APCA 2016: Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores / Tuca Vieira. Categoria “Pesquisa”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.06, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6493>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2016: Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos / Fernando Meirelles, Daniela Thomas e Andrucha Waddington. Categoria “Fronteiras da Arquitetura”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.07, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6494>.
PERROTTA-BOSCH, Francesco. Prêmio APCA 2016: Ocupação Hotel Cambridge / Carmen Silva, Pitchou Luambo, Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn. Categoria “Apropriação Urbana”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.08, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6495>.
1
Ver José Guilherme Pereira Leite, “Prefeito aquariano, cidade nem tanto”, em Carta Capital, 27/09/2016, disponível em <www.cartacapital.com.br/politica/prefeito-aquariano-cidade-nem-tanto>.
sobre o autor
Guilherme Wisnik é crítico de arquitetura e professor na FAU USP.