A urgência da ação
O déficit habitacional brasileiro é nada menos que brutal. Em grande medida, isso se justifica pelas décadas de omissão do Estado, cujas consequências se materializam nas favelas e periferias brasileiras, nas quais milhões de cidadãos encontram soluções pessoais para a necessidade básica de abrigo – locais com urbanização precária e problemas de infraestrutura, porém com dinâmicas economias informais e grandes virtudes comunitárias. Por sua vez, o debate sobre políticas públicas para habitação social assenta-se num dualismo: ficamos entre a quantidade sem qualidade do Minha Casa Minha Vida e o elogio a alguns projetos exemplares concebidos por bons arquitetos apoiados por funcionários públicos excepcionais. Nenhum desses dois casos responde ao sentido de emergência própria à necessidade dos milhões de sem-teto. Não é fortuito que, na última década e meia, tenha emergido uma miríade de movimentos sociais ligados à moradia urbana e tenham se proliferado as ocupações.
Tais importantes casos não raramente são mal conduzidos para a esfera policialesca ou reduzidos a análises que recaem na precariedade ou na provisoriedade. Todavia, cabe aqui entender as ocupações como solução, especialmente em casos como o do Hotel Cambridge, no qual a busca pela moradia se irradia por campos culturais e assume diretamente problemáticas contemporâneas, como a situação dos refugiados.
O hotel desativado foi ocupado em 23 de novembro de 2012 por membros do Movimento Sem Teto do Centro – MSTC. Sob a liderança de Carmen Ferreira da Silva, o ato de posse foi acompanhado pela retirada de toneladas de lixo acumulado nos anos de abandono e pela adequação das instalações do edifício para comportar cerca de 125 unidades habitacionais. O que se constata em uma visita à ocupação é uma dignidade notável tanto no interior dos apartamentos, cada qual com as particularidades da intimidade de cada família residente, quanto nas áreas comuns, cuja gestão e manutenção coletiva levam a um invejável nível de cuidado interno.
Aliás, estes espaços comunitários do edifício beneficiaram-se da intervenção arquitetônica feita pela equipe do filme Era o Hotel Cambridge, dirigido por Eliane Caffé. A direção de arte de Carla Caffé fez parceria com membros do corpo docente e 21 alunos da Escola da Cidade para compor um coletivo que não se restringiu a satisfazer as demandas do roteiro, mas atentou também para as demandas da ocupação. O antigo saguão do hotel tornou-se uma área dedicada a brincadeiras para as crianças da Cambridge. O que era um conjunto de livros guardados em um depósito transformou-se em uma biblioteca com áreas de leitura e informática. O salão com lambris de madeira na parede foi reavivado como espaço de encontros coletivos. A produção do longa-metragem, em conjunto com arquitetos, futuros arquitetos e os moradores, colocou a mão na massa para realizar melhorias reais em poucos meses e com verba limitada.
Um desdobramento dessa aproximação entre os moradores e a cena cultural paulistana deu-se na Residência Artística Cambridge. Ao longo do ano de 2016, os artistas Ícaro Lira, Virginia de Medeiros, Julián Fuks, Jaime Lauriano e Raphael Escobar passaram meses na ocupação estabelecendo interlocuções, relações, vínculos, atividades colaborativas. Fizeram trabalhos artísticos que lidavam diretamente com a situação estabelecida, isto é, com a realidade do mundo que dentro do Cambridge expõe a face verdadeira e áspera de uma sociedade que fragiliza direitos básicos e universais dos seres humanos.
Igualmente dignos de atenção são os imigrantes da África, América Latina e Oriente Médio que moram no Cambridge. A ocupação é uma das principais incubadoras do GRIST, o Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto de São Paulo, que tem no congolês Pitchou Luambo um de seus principais líderes.
A lição proporcionada pela Ocupação Hotel Cambridge se alicerça no confronto direto com a realidade. Por um lado, clama estrondosamente pela necessidade de uma reforma urbana nacional. Por outro, sinaliza uma alternativa positiva para a habitação social no Brasil. Pois ocupações não são projetos para um futuro distante, mas resoluções imediatas para problemas prementes da sociedade. De certo modo, a lógica da apropriação aqui põe em dúvida a própria noção de projeto como antevisão de uma construção a ser executada após um período de tempo. Isso talvez seja demorado demais para problemas tão urgentes.
nota
NE – O número especial da revista Drops dedicado à premiação da modalidade Arquitetura e Urbanismo da APCA conta com os seguintes artigos:
GUERRA, Abilio. Arquitetura e Urbanismo na premiação da Associação Paulista de Críticos de Arte. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.01, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6488>.
RECAMÁN, Luiz. Prêmio APCA 2016: Sergio Ferro. Categoria “Trajetória". Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.02, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6489>.
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2016: Projeto Ruas Abertas – Avenida Paulista / Fernando Haddad. Categoria “Urbanidade”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.03, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6490>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2016: Escola Senai São Caetano do Sul / Claudia Nucci e Valério Pietraróia – NPC Grupo Arquitetura. Categoria “Obra de Arquitetura”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.04, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6491>.
SEGAWA, Hugo. Prêmio APCA 2016: Luciano Brito Galeria – antiga Residência Castor Delgado Perez / Piratininga Arquitetos e outros. Categoria “Preservação de Patrimônio Moderno”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.05, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6492>.
KOGAN, Gabriel. Prêmio APCA 2016: Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores / Tuca Vieira. Categoria “Pesquisa”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.06, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6493>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2016: Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos / Fernando Meirelles, Daniela Thomas e Andrucha Waddington. Categoria “Fronteiras da Arquitetura”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.07, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6494>.
PERROTTA-BOSCH, Francesco. Prêmio APCA 2016: Ocupação Hotel Cambridge / Carmen Silva, Pitchou Luambo, Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn. Categoria “Apropriação Urbana”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.08, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6495>.
sobre o autor
Francesco Perrotta-Bosch é arquiteto e ensaísta.