Natureza e artifício
A poética da cerimônia de abertura da Olimpíada 2016 se inscreve em um campo híbrido de coreografia, cenografia, instalação, arquitetura, teatro, projeção de imagens, sarau, desfile de beldades e figuras do mundo da mídia. Nessa profusão de inscrições criativas, o foco é a experiência, não a tecnologia. O substrato é o corpo, não um conjunto de técnicas. É o corpo que se abre ao tempo e ao espaço. É o corpo, em seu movimento sensível, como dança, que ensaia o vivido, desenha o espaço, espacializa o tempo, é ele que instaura a cultura e dá voz às significações do mundo.
Para a arquitetura, a premiação à primeira vista aprecia o belo, as configurações, o domínio do espaço, a interação transdisciplinar entre as artes, a técnica e outras linguagens e programas, em movimento inverso à fragmentação do mundo em campos disciplinares. Mas também o relato crítico de uma “história vivida”, no qual a cerimônia celebra “esta terra” como “espaço de experiência” e uma perspectiva de futuro.
Sensível e dramático na composição e na interpretação, o evento exalta uma linha do tempo que assinala “eras” no Brasil, que vão do habitar o mundo natural ao caos urbano da vida metropolitana contemporânea. Da natureza bruta à sua transformação por um construtivismo frenético que urbaniza nossas cidades, opera com um conceito de beleza que não busca ser original, mas singular. Organiza códigos de cultura e formas concretas da vida cotidiana: primitivismo e modernidade – bonde e mata virgem, como pintava Tarsila do Amaral, em um enredo sobre a particularidade histórica e antropológica do Brasil. E assim escancara a singularidade que nos habita.
Na interface entre imagens, narrativas e performances, a perspectiva histórica e sua inteligência ultrapassam qualquer sentimento de falta de orgulho por termos sido colonizados. A visão de paraíso desta terra, algum personagem ilustre e o trabalho anônimo, a história que pode ser contada pelo desejo e não pelas relações de poder alimentam a memória coletiva com a afirmação de que são mulheres e homens comuns que constroem a nação Brasil.
Cartografia de memória e imaginação, “a intencionalidade estética” da montagem se afasta da ideia de mercadoria, entretenimento e mercado. O espetáculo, que é hoje uma atividade e/ ou uma categoria definida como mais um bem da sociedade de consumo, é, na abertura da Olimpíada, uma obra em que o sentimento de pertencimento é intenção do projeto, e não fetiche de um produto com valor de troca. Assim, o enredo histórico é obra e esforço de todos os personagens, protagonistas e espectadores, que somos todos nós, brasileiros.
A arquitetura se solidariza com as artes em sua capacidade de plasmar âmbitos de significação, mas também em ampliar campos de possibilidade. Reconhece o valor do espetáculo que, inscrito em uma rede de signos e significações que espelham nossa subjetividade social, encontra a história universal na demanda da preservação da natureza.
Aberta à possibilidade de fruição e intersubjetividade, a celebração das diferenças deste povo se associa a outros povos, na exposição esperançosa de uma possibilidade de futuro. O posicionamento crítico diante da contemporaneidade aposta na perspectiva de um sujeito agente de transformações, que abandona a insistência em uma ação de domínio e aposta em uma relação de convivência e solidariedade entre natureza e artifício.
Os críticos de arquitetura da APCA premiam a festa de um passado e um porvir de todos com todos, no projeto dos diretores artísticos, Fernando Meirelles arquiteto, cineasta, produtor e roteirista –, Daniela Thomas – cineasta, diretora teatral, dramaturga, iluminadora, cenógrafa, figurinista – e Andrucha Waddington – diretor, produtor de cinema e publicidade.
nota
NE – O número especial da revista Drops dedicado à premiação da modalidade Arquitetura e Urbanismo da APCA conta com os seguintes artigos:
GUERRA, Abilio. Arquitetura e Urbanismo na premiação da Associação Paulista de Críticos de Arte. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.01, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6488>.
RECAMÁN, Luiz. Prêmio APCA 2016: Sergio Ferro. Categoria “Trajetória". Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.02, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6489>.
WISNIK, Guilherme. Prêmio APCA 2016: Projeto Ruas Abertas – Avenida Paulista / Fernando Haddad. Categoria “Urbanidade”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.03, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6490>.
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prêmio APCA 2016: Escola Senai São Caetano do Sul / Claudia Nucci e Valério Pietraróia – NPC Grupo Arquitetura. Categoria “Obra de Arquitetura”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.04, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6491>.
SEGAWA, Hugo. Prêmio APCA 2016: Luciano Brito Galeria – antiga Residência Castor Delgado Perez / Piratininga Arquitetos e outros. Categoria “Preservação de Patrimônio Moderno”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.05, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6492>.
KOGAN, Gabriel. Prêmio APCA 2016: Atlas fotográfico da cidade de São Paulo e arredores / Tuca Vieira. Categoria “Pesquisa”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.06, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6493>.
VILLAC, Maria Isabel. Prêmio APCA 2016: Cerimônia de Abertura dos Jogos Olímpicos / Fernando Meirelles, Daniela Thomas e Andrucha Waddington. Categoria “Fronteiras da Arquitetura”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.07, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6494>.
PERROTTA-BOSCH, Francesco. Prêmio APCA 2016: Ocupação Hotel Cambridge / Carmen Silva, Pitchou Luambo, Juliana Caffé, Yudi Rafael e Alex Flynn. Categoria “Apropriação Urbana”. Drops, São Paulo, ano 17, n. 115.08, Vitruvius, abr. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/17.115/6495>.
sobre a autora
Maria Isabel Villac, pesquisadora e professora na FAU Mackenzie.