O tema dos presentes comentários é recorrente no Direito da Arquitetura. Trata-se de saber se é direito ou obrigação do arquiteto fiscalizar a obra que projetou e que está sendo levantada por outra pessoa. Já tive a oportunidade de escrever sobre o assunto em meu livro O arquiteto e a lei – elementos de direito da arquitetura (1) mas volto a ele diante de um processo judicial arquivado recentemente e que teve decisões divergentes na Justiça Paulista, a demonstrar que a matéria continua polêmica. O recurso ao Superior Tribunal de Justiça não foi admitido.
A ideia básica sobre a questão é que, em princípio, a fiscalização é um direito, uma faculdade do arquiteto que projetou a obra tal como consta da lei do CAU, de 2010. A norma diz:
“Ao arquiteto e urbanista é facultado acompanhar a implantação ou execução de projeto ou trabalho de sua autoria, pessoalmente ou por meio de preposto especialmente designado com a finalidade de averiguar a adequação da execução ao projeto ou concepção original” (2).
Esta faculdade só se transforma em dever, em obrigação, se o arquiteto expressamente assumiu um contrato de fiscalização ou então fez um contrato de projeto e fiscalização, que é muito comum. Porém, numa atenuação disso, pode-se também entender que se a RRT indicar qualquer atividade de fiscalização – mesmo não havendo contrato formal –, o arquiteto que a declarou fica vinculado ao acompanhamento.
O caso teve início em 2012 e ocorreu em Presidente Prudente (feito 0024932-47.2012.8.26.0482). Uma arquiteta firmou contrato oneroso de prestação de serviço para elaboração de projeto arquitetônico completo de uma residência e, segundo ela, jamais para executar, fiscalizar, dirigir ou supervisionar a obra. Ocorre que a obra apresentou problemas estruturais sérios que se manifestavam na falta de alinhamento das paredes (“paredes tortas”), laje com defeito técnico etc. O dono da obra ingressou com ação de indenização contra ela, pedindo mais de cem mil reais entre danos materiais e danos morais por suposta omissão da fiscalização. A perícia constatou diversas anomalias executivas como falta de sondagem do terreno, compactação ineficiente do aterro, recalque diferencial das fundações, trincos e rachaduras, entre diversas outras.
A arquiteta – que elaborou e aprovou o projeto na Prefeitura – não acompanhou a execução da obra e, portanto, segundo o Magistrado sentenciante, “a questão de direito pendente diz respeito à responsabilidade pela execução da obra. Se está implícita no contrato ou se exige contratação expressa e específica”. O Tribunal de Justiça registrou a mesma coisa: a arquiteta, de fato, “não acompanhou nem exerceu qualquer tipo de fiscalização durante a realização da construção, pendendo discussão nos autos acerca da existência ou não de responsabilidade dela por este acompanhamento”.
Nisto as duas decisões, de primeiro e segundo graus, foram divergentes. A sentença julgou procedente ação, condenando a arquiteta. Entendeu que ela
“não assumiu obrigação expressa de acompanhamento da obra, mas em razão de ser a responsável pelo projeto com RRT tinha o dever e fiscalizar se o seu projeto estava sendo executado com boa técnica”.
Entendeu, assim, haver um
“dever implícito assumido pela arquiteta de transformar o projeto em realidade, senão seguindo diuturnamente a obra, mas fiscalizando-a diretamente ou por terceiros, ainda que à distância e eventualmente vistoriando-a, de modo que se projeto se efetivasse nos moldes como contratado”.
Porém, houve recurso da arquiteta, e em 2017, o Tribunal de Justiça, sem maiores indagações, modificou a decisão e decretou a improcedência da ação em acórdão simples e sintético que rechaçou a tese do dever implícito. Reconheceu que a execução não obedeceu ao projeto e que não houve acompanhamento por parte da arquiteta. Mas observou que o contrato de prestação de serviço era bem claro quanto à contratação da arquiteta apenas para a elaboração do projeto. Assim,
“uma vez que não há responsabilidade expressamente assumida pela arquiteta quanto a qualquer tipo de vistoria ou acompanhamento da construção, incabível acatar a tese da responsabilidade implícita da arquiteta pela fiscalização da execução do projeto apenas porque esta detém conhecimento técnico de seu projeto, uma vez que outro profissional do ramo também ostentaria o conhecimento técnico necessário para implantar ou executar o conteúdo do projeto”.
Portanto, aplicando o referido art. 15/Parágrafo único da lei do CAU, concluiu o Tribunal que os prejuízos experimentados pelo dono da obra em razão da má realização da construção não poderiam ser imputados à profissional. A ação, por isso, foi julgada improcedente e já transitou em julgado.
Parece-me que a questão envolve dois aspectos, que se comunicam: o legal e o profissional (ou deontológico). Quanto ao legal, é evidente que, formalmente, a fiscalização é uma faculdade do arquiteto, traduzida em trabalho técnico, que a exerce se quiser, mediante contrato específico. Entretanto, a sentença – de 15 laudas – não parece incorreta quando diz que do profissional
“exigia-se ao menos uma visita ao local onde seria erigido o prédio residencial, para verificação da compatibilidade entre o projeto e o terreno e no caso das fundações, ao menos uma visita para ordenar os meios de cumprimento do projeto. Não houve esta visita, de modo que o construtor responsável pela construção e que fora contratado pelo dono da obra efetuou as obras de fundações e aterro a seu modo, sem cumprir o projeto”.
Assim, cabe indagar de modo genérico: ainda que não fiscalize a execução, (a) pode um arquiteto desenvolver um projeto edilício sem conhecer o lote e suas circunstâncias específicas, inclusive topográficas? Este é o ponto que se torna relevante e não cabe dizer, aqui, se houve ou não houve esta visita no caso relatado porque isto era matéria de prova. Mas é certo que tal desconhecimento poderá implicar prejuízos graves à inserção harmônica, à adaptação ao sítio, ao conforto e, logo, à qualidade do projeto. Depois, (b) feito e aprovado o projeto, o arquiteto se desvencilha dele por completo? Ora, a resposta a esta questão é totalmente negativa. Em primeiro lugar, porque pode haver vícios funcionais, que tornam a edificação inadequada para o uso pretendido gerando a responsabilidade do profissional, como relato no livro acima indicado. Em segundo lugar porque há direitos autorais do arquiteto, que persistem depois da obra pronta, como é evidente, fazendo com que apenas ele tenha direito de fazer modificações naquilo que criou.
Em terceiro lugar e mais importante, há quem entenda que a fiscalização é um dever fundamental do projetista, mesmo que não contratado para tanto. Vou dar um exemplo significativo: Lucio Costa em parecer sobre a regulamentação do exercício da profissão de arquiteto – parecer dado ao Conselho Superior do IAB, em 1959 – afirma:
“Ao arquiteto compete fiscalizar a fiel interpretação do projeto e a correta execução da obra dos pontos de vista técnico e artístico, e supervisioná-la” (3).
O verbo “competir” traz o sentido forte de obrigação, de dever, tal como ocorre, também, nos dispositivos constitucionais que tratam das competências dos entes federativos. Assim, ao Município não apenas “compete” promover o adequado ordenamento do seu espaço urbano (art. 30/VIII) por meio do plano diretor como é um dever fazer isso (competência como imposição).
O projeto constitui extensão da personalidade do arquiteto do que derivam consequências várias para ele, consequências que não se esgotam na obtenção da licença edilícia. Vão além. O vínculo entre o arquiteto e aquilo que criou (autor e obra) é indestrutível e, assim, vários cuidados se impõem sobretudo quando da transitivação do projeto, ou seja, de sua inserção no mundo real. Não se pode esquecer aquilo que consta logo no item 1 do Código Guadet, de 1895:
“o arquiteto é, a um só tempo, um artista e um prático. Sua função é a de conceber e estudar a composição de um edifício, de dirigir e supervisionar a execução dele, de verificar e controlar as contas de despesas a ele relativas”.
Depois desses breves comentários, a conclusão a que chego é a seguinte: a decisão do Tribunal de Justiça limitou-se à análise da legalidade. E estará correta. Mas parece haver elementos no caso – vários elementos circunstanciais – a demonstrar que a justiça talvez penda para aquilo decidido na sentença, o que permite muitas discussões e debates sobre a prática profissional do arquiteto.
notas
1
CASTILHO, José Roberto Fernandes. O arquiteto e a lei: elementos de direito da arquitetura. 3ª edição. São Paulo, Pillares, 2017.
2
Regulamentação do exercício da Arquitetura e Urbanismo. Lei nº 12.378, Art. 15. Parágrafo único, de 31 de dezembro de 2010 <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12378.htm>.
3
COSTA, Lucio. Sôbre arquitetura. 2ª edição. Porto Alegre, UniRitter, 2007, p. 292.
sobre o autor
José Roberto Fernandes Castilho é professor de direito urbanístico e de direito da arquitetura na FCT Unesp.