O Brasil definitivamente não conhece o Brasil.
Todo mundo espantado que em Bacurau tem um museu. Não se fala noutra coisa: que é a chave do filme (1), sua metáfora secreta, o elemento desconcertante, seu enigma.
Ontem mesmo li um belo artigo no El País (2) a respeito, que nele reincidia. Fico esperando que os museólogos, ou antes, os benjaminianos se pronunciem sobre o tema. Mas adianto que no Nordeste sabemos que o povo devoto, a gente simples, sem ter a quem apelar, costuma amontoar suas ofertas mais preciosas, ainda que, para muitos, triviais, seus suportes materiais do sagrado, artefatos cotidianos e memoriais e imagens de desejos e graças, em coleções verdadeiramente borgeanas, a que dão o nome lírico-católico-pagão de Museu.
Só isso: “museu”. Tá pregado numa tabuleta no portão de entrada. Não tem muito a ver com a definição do ICOM, mas evoca certos acervos de relíquias e ex-votos de catedrais e mosteiros europeus, principalmente ibéricos, só que bem mais copioso e variado que naquelas terras de reis mais católicos que os papas. Vai ver!
Esse acima é o de Santa Quitéria de Frexeiras, no Agreste meridional de Pernambuco, quando o visitei com Dona Mercês Tavares Correia – “vovó Mercês” – em 1993. Ela gostava de viajar como ninguém. Dessa vez achou tudo um pouco “lúgubre” demais – achei arcaica a expressão que ela usou –, mas sorriu pra mim nessa foto, em meio à sua sementeira, ali perto.
Como Frexeiras, Bacurau não está no GPS, tá num mundo futuro (ou ancestral) qualquer, perdida em qualquer parte e não necessariamente no nordeste brasileiro. Mas é dessa memória profunda, densa, pesada, gravada no couro da gente na base de sofrimento, abandono, medo, esperança, benção e redenção que ele – o museu, a cidade imaginária, o filme – se fez, ou se fará.
notas
1
Bacurau, ficção, Brasil/França, 2019, 2h12min. Direção e roteiro de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Com Sônia Braga, Barbara Colen, Sônia Braga, Udo Kier.
2
NUNES, Rodrigo. ‘Bacurau’ não é sobre o presente, mas o futuro. El Pais, Madri, 6 out. 2019 <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/05/cultura/1570306373_739263.html>.
sobre o autor
José Tavares Correia de Lira é professor titular do departamento de história da arquitetura e estética do projeto da FAU USP e ex-diretor do Centro de Preservação Cultural da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e O visível e o invisível na arquitetura brasileira (DBA, 2017), e organizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2004, com Rosa Artigas).