As últimas homenagens que fizemos nesta Congregação foram para celebrar nossos queridos colegas que estão se aposentando e passando para uma nova fase de sua carreira. Esta é a primeira vez que, Maíque e eu, atualmente na chefia do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAU USP, temos de falar “oficialmente”, numa homenagem sobre um colega falecido. Neste caso é especialmente doído, pois tanto Maíque, que não está aqui por ter ido a uma banca em Brasília, quanto eu, somos muito próximos do Benedito e da Suzana, e tivemos o privilégio de usufruir de sua amizade.
Quem teve o prazer de conhecer o Benedito para além de compromissos profissionais, sabe o quão divertido e bem-humorado ele era.
Mas hoje não estamos aqui para celebrar o amigo Benedito, mas o Benedito professor da FAU, nosso caro colega de departamento. E neste momento, de maneira singela e breve, pois pretendemos homenagear o Benedito, num futuro próximo, promovendo uma das coisas de que ele mais gostava – a pesquisa – em evento científico a ser organizado. O primeiro aspecto, ao conversarmos sobre esta sessão de hoje, que Maíque e eu gostaríamos de ressaltar, é o do Benedito historiador da arquitetura. Pode parecer uma obviedade, mas não é.
Ao pensar em seus colegas de geração – e, entre seus vários e estimados colegas não podemos deixar de mencionar Maria Ruth Amaral de Sampaio, por quem Benedito tinha uma especial admiração – , em seus mestres, e nos historiadores da arquitetura do Departamento de História – como Nestor Goulart Reis Filho, Carlos A. C. Lemos, Júlio Roberto Katinsky – que todos tiveram papel importante para ajudar a consolidar a pesquisa nesta instituição, é importante relembrar que tinham abordagens muito diferentes entre si. E talvez, deles, Benedito fosse o mais afeito aos instrumentos próprios da história da arquitetura.
Não se trata de dizer que um estivesse certo e outro não, mas de enfoques e abordagens distintas e pertinentes de um mesmo temário, que ajudaram a consolidar um campo no Brasil. Benedito nunca professou posturas mutuamente excludentes, pelo contrário, sempre foi partidário de visões complementares. Em suas leituras da história e em releituras historiográficas, sempre favoreceu a continuidade, e jamais enfatizou a ruptura. Um dos aspectos que sobressai nos trabalhos dele é a capacidade de leitura espacial: ler o objeto, não apenas em sua conformação, mas também no espaço em que está inserido.
Quando Benedito lê uma obra escultórica, ou um retábulo, ou uma fachada, ou um organismo arquitetônico em sua inteireza, ou uma cidade, lê essas obras também no espaço que lhes é próprio, analisando esse espaço como um todo. É por isso que sua descrição da Fachada de São Francisco em Ouro Preto, ou do adro de Congonhas do Campo, ou da cidade de São Paulo trazem contribuições tão originais. É uma capacidade que deveria estar presente nos arquitetos, mas que não ocorre com a frequência desejada; é fruto de um trabalho de aprendizado árduo, que exige mente aberta, muito estudo e muita dedicação, dedicação que Benedito teve ao longo de toda a sua vida.
Também é notável a sua capacidade de ler e confrontar fontes de natureza diversa; não apenas a obra em si, as fontes bibliográficas e documentais, mas também sobressai sua atenção ao risco, ao desenho, às gravuras, à fotografia, aos cartões postais, aos mapas. Um olhar aguçado que fez dele também um refinado fotógrafo.
A sua mencionada capacidade de ler as obras no espaço foi amplificada e se alimentou de sua frequente presença em campo, do contato direto e cotidiano com as obras que analisa, da escultura à cidade, passando pelos caminhos da Serra do Mar. Ele soube ler como poucos obras e o espaço estruturado e estratificado ao longo do tempo. Essa visão espacial e a frequentação dos locais, traduziu-se também num empenho cívico e ativo em prol da cidade, num compromisso público com a preservação, com “estruturas ambientais urbanas”, segundo a locução da época, e seu empenho, conjunto com o de outros colegas, como Carlos Lemos, por uma legislação urbanística que abarcasse as questões de inventário e de preservação.
O seu compromisso público também foi voltado para a Escola Pública, em especial a partir de sua atuação em prol desta casa, algo que vem desde seu ingresso como estudante da FAU, em 1957, com sua atuação no Grêmio, e perpassou toda a sua carreira de professor.
Também entre as atividades que ajudou a promover no grêmio e depois como docente, está a documentação sistemática da arquitetura brasileira, articulada a ações em prol da fotografia, de visitas e viagens de estudo, de publicações, aliadas a ciclos de cinema, de concertos, de exposições.
Há de se falar também dos conferencistas convidados, tanto os brasileiros como Flávio de Carvalho, Gregori Warchavchik, Gilberto Freyre, como estrangeiros a exemplo de Giulio Carlo Argan, Bruno Zevi, Richard Neutra. O gosto por receber e ouvir outras vozes esteve presente em toda a sua carreira, em que, sempre que possível, também acompanhava os convidados por visitas pelo centro de São Paulo, desde a época de estudante até as mais recentes, como a de Joseph Rykwert ou a de Francesco Furlan, em outubro do ano passado, durante o evento “Artes renascentes”, organizado pelo Maíque e pela Andrea Loewen na FAU USP.
Sua curiosidade intelectual e capacidade de ouvir o outro, aliada à sua afabilidade fez com que desenvolvesse longas e profícuas amizades com colegas de outras instituições, nacionais e estrangeiras, como José Liberal de Castro, António Menéres, Jean Barthélemy, Rafael Moreira. Deve ser também mencionado seu amor por livros, que o tornou um assíduo colaborador da biblioteca da FAU USP, enriquecendo o acervo sobre arquitetura brasileira, sobre o barroco, sobre o século 19, sobre a cidade, e que contou com apoio e colaboração de sua esposa e companheira de pesquisas e de jornadas, Suzana Aléssio de Toledo.
Impossível não lembrar de seu papel como professor e orientador, em que promovia a reflexão associada a visitas de campo e ao contato com uma literatura mais vasta – e é importante apontar seu relevante papel na divulgação da historiografia portuguesa entre nós –, sempre estimulando a autonomia intelectual. É divertido ver a lista de seus orientandos de mestrado e doutorado, que abrangem temas e nomes variados como Renina Katz e Murillo Marx, por exemplo.
Benedito esteve entre os pioneiros da história da arquitetura no Brasil, começando a atuar num período em que se mostrava mais urgente fazer história, do que refletir sobre o método. E ao fazer história, e, mais tarde ao refletir sobre historiografia, Benedito nos deixa importantes lições. Entre elas, a admiração pelo mestre Lourival Gomes Machado e também pelos textos de Lúcio Costa. Quando Benedito enfrenta os mesmos temas que eles abordaram, procura lançar novas luzes, esclarecer determinados aspectos, aprofundar outros. Ou seja, uma admiração que não significa obediência, ou imitação, ou mera aposição, mas reelaborar os temas com autonomia e maturidade intelectual, favorecendo a continuidade, a construção paulatina, jamais enfatizando a ruptura.
Isso fica também evidente em seu texto de crítica historiográfica sobre Robert Smith em que, ao mesmo tempo em que reconhece e aprecia as relevantes contribuições, aponta limites e problemas. Nesse sentido, nos deixa lições preciosas de como ler referenciais de maneira fundamentada, de como se confrontar com o pensamento de outro autor – mesmo com aqueles com os quais existem muitas aproximações –, de modo construtivo e com argumentação sólida, sem recair em reducionismos e negacionismos, infelizmente tão em voga hoje no Brasil em muitos âmbitos da vida pública.
Benedito nos deixa lições de história, de historiografia, como educador de gerações e também como ser humano, por sua generosidade, educação e gentileza, algo que também está desaparecendo da vida pública e privada em tempos recentes.
Se Maíque e eu começamos com uma breve nota pessoal, gostaríamos também de terminar com uma observação: a única foto que está exposta na Secretaria de nosso Departamento é uma foto de Benedito com as secretárias do Departamento, no almoço de comemoração de sua aposentadoria; ele fez questão que fosse tirada, ampliou, mandou emoldurar, e veio trazer pessoalmente em sinal de agradecimento. Isso também diz muito sobre o ser humano Benedito Lima de Toledo.
notas
NA – Texto lido na homenagem ao professor Benedito Lima de Toledo, realizada na 623aSessão Ordinária da Congregação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, no dia 30 de agosto de 2019.
NE – O arquiteto Benedito Lima de Toledo (FAU USP, 1961), professor titular de História da Arquitetura da graduação e pós-graduação da mesma escola, membro da Academia Paulista de Letras, autor de vários livros – São Paulo: três cidades em um século (1981), Álbum iconográfico da Avenida Paulista (1987), Anhangabaú (1989), Prestes Maia e as origens do urbanismo moderno em São Paulo (1996), dentre outros – faleceu em 31 de julho de 2019.
sobre os autores
Beatriz Mugayar Kühl é arquiteta (FAU USP, 1987), mestre em Science in Architecture Conservation (Katholieke Universiteit Leuven, 1992), doutora (FAU USP, 1996) e pós-doutora em preservação a (Università delgi Studi di Roma "La Sapienza”, 2001-2005). Atualmente é Professor Associado da USP.
Mario Henrique Simão D’Agostino, Maíque, é arquiteto (FAU PUC-Campinas, 1985), mestre e doutor (USP, 1991 e 1995). Atualmente é professor associado (livre-docente) da Universidade de São Paulo.