Quais as reais condições ambientais no interior de um edifício de escritórios da conhecida “caixa de vidro” e quais as implicações destas no bem-estar dos ocupantes? Qual a demanda energética para torná-los ocupáveis? Ou seja, quanto se consome de energia para que seja alcançado o conforto térmico e luminoso dentro de uma caixa de vidro, em particular naquelas localizadas em cidades de clima quente como São Paulo (cidade de clima subtropical de altitude)?
Em 1990, ganhavam expressão as discussões sobre o desempenho ambiental e a eficiência energética dos edifícios de fachadas envidraçadas, nos cenários nacional e internacional. Hoje, trinta anos depois, a grande maioria da produção de edifícios altos de escritórios nas cidades brasileiras (assim como em muitos outros países ao redor do mundo) segue com o padrão de projeto do século passado da caixa de vidro monolítica, hermeticamente fechada e dependente dos sistemas prediais de condicionamento de ar e iluminação artificial por 100% do tempo de ocupação, em que os usuários são cada vez mais desconectados do controle das suas condições ambientais, de forma geral.
Um levantamento feito por Daniela Pereira (1) de uma amostra de edifícios de escritórios construídos desde o início dos anos 2000 em São Paulo mostrou que aproximadamente 65% destes são de forma retangular e tem uma área de laje entre cerca de 1.000 e 2.100 m2, com dimensão de planta que pode chegar a 30 por 70 metros. As fachadas de vidro reflexivo variam entre a cor azul, cinza e verde, sendo projetadas para não abrirem, ou seja, sem janelas. Estamos olhando para uma produção de edifícios que não reflete as expectativas e exigências humanas de qualidade ambiental do momento atual, e tampouco as demandas ambientais e energéticas do século 21.
Mas por que perpetuamos um padrão “vencido” do edifício de escritórios em grandes cidades como São Paulo, assim como no restante do país e em um contexto mais global? A resposta para esta pergunta contém múltiplos fatores. Um deles é o custo da energia, que provavelmente ainda não é alto o suficiente para gerar um verdadeiro interesse por soluções arquitetônicas de real impacto na redução da demanda energética, como a elaboração de formas e fachadas para o bom aproveitamento da luz natural, a volta do sombreamento externo nas fachadas e até mesmo a abertura seletiva da fachada para a ventilação natural. Em São Paulo, por exemplo, paga-se R$ 0,51 por 1 kWh (2), enquanto em Londres, o valor é quase o dobro, subindo para o que seria aproximadamente R$ 0,93/kWh (3). Em Frankfurt, paga-se ainda mais, chegando ao equivalente a R$ 1,70 por 1 kWh (4).
Outro fator é a falta de um entendimento técnico aprofundado do desempenho ambiental e energético deste tipo de padrão e de como fazer melhor. Não menos importante, é a força da imagem que se mantém do edifício do tipo caixa de vidro climatizada como símbolo de status comercial.
Sendo assim, quais as perspectivas arquitetônicas e tecnológicas para a realização de edifícios altos comerciais de melhor desempenho ambiental e energético? Qual a imagem desta nova arquitetura? Ou seja, o que muda no projeto do edifício em prol de um melhor desempenho? Além disto, custa mais caro fazer melhor?
Outro aspecto ambiental problemático do edifício hermético tipo caixa de vidro é a dependência dos sistemas mecânicos de resfriamento e ventilação durante 100% do tempo de ocupação, que torna os ambientes dos usuários mais suscetíveis a contaminantes internos, com consequências diretas para a saúde. A preocupação com a qualidade do ar ganha uma proporção sem precedentes no cenário da pandemia do novo Coronavírus. Colocar um alto grau de atenção à questão da manutenção dos sistemas de ventilação mecânica é certamente uma medida a ser tomada, mas não dispensa o questionamento sobre a real necessidade de tamanha dependência destes sistemas. Vale lembrar que em edifícios comerciais, o custo direto e indireto com salários dos usuários é muito maior do que o custo acumulado de projeto, construção, operação e manutenção de um edifício (5). Resultados de pesquisas mostram um aumento de 0,1 a 2% na produtividade dos usuários, em decorrência de melhorias na qualidade do ambiente de trabalho (6).
Na discussão sobre a qualidade do ar interno, vale considerar que o sistema de condicionamento de ar reutiliza o ar interno, adotando apenas uma fração de renovação do mesmo via a captação de ar externo, ou seja, em ambientes comuns de escritório nunca existe 100% do chamado “ar fresco”. As recomendações de renovação do ar interno da norma brasileira NBR 16401 (7), que dá parâmetros para o projeto de sistemas de refrigeração de ambientes internos, seguem aquelas da Anvisa (8), que indica a necessidade da tomada mínima de 27 m3de ar externo por pessoa por hora. Aplicando este critério para um andar típico de escritórios com uma ocupação de 8 a 10 metros quadrados por pessoa, chega-se a aproximadamente 10% de ar proveniente do exterior, enquanto os demais 90% são de ar “recirculante”.
Quanto maior a parcela de renovação do ar, em outras palavras, da introdução de ar externo no sistema de refrigeração, mais energia é consumida no processo de resfriamento. Paralelamente, vale lembrar que os filtros dos sistemas de ar condicionado não têm efeito de retenção de vírus ou gases, atuando apenas no controle de particulados. Desta forma, o projeto e a operação dos sistemas prediais de climatização são deparados com o dilema entre uma melhor qualidade do ar, de grande importância em um cenário de viroses e outros contaminantes e associada a uma maior entrada de ar externo, versus uma maior eficiência energética do sistema. Somadas às questões energéticas, a polêmica da qualidade do ar dos sistemas de climatização levanta, mais uma vez, o questionamento a respeito do uso indiscriminado de tais sistemas.
E como ficam os custos do projeto deste padrão de edifício? De uma forma geral, estamos falando de projetos simplificados e replicados, que são também baratos. O interesse por edifícios melhores está diretamente associado a projetos mais elaborados, com mais conhecimento técnico e avaliações de desempenho ambiental desde a etapa de concepção, mas isso seria tão mais caro do que a prática comum? No exterior, uma pesquisa de Greg Kats (9) revelou que uma amostra de 170 edifícios aclamados como “verdes”, nos Estados Unidos, teve um custo médio de apenas 1,5% a mais para a sua construção do que seus similares que não foram pensados para um desempenho ambiental diferenciado.
A discussão sobre demanda energética e qualidade ambiental nas edificações fica ainda mais relevante quando consideramos que a maioria dos edifícios recentemente construídos vão durar no mínimo outros 50 anos e enfrentarão o futuro de mudanças climáticas e aquecimento das cidades. Como demonstrado por uma série de estudos (10), apenas abrindo as janelas vamos conseguir abaixar significativamente o consumo de energia nos edifícios comerciais, mas para isso, precisamos reinventar as fachadas a fim de minimizar os ganhos de calor solar e repensar as dimensões dos pisos e arranjos espaciais.
Apesar da histórica falta de interesse geral por edifícios melhores, a combinação de um maior entendimento sobre o real desempenho do edifício da caixa de vidro, assim como das vantagens ambientais e econômicas de edifícios de melhor qualidade e das possibilidades técnicas para isso como, guarda o potencial despertar os agentes envolvidos no setor das edificações no Brasil e internacionalmente, para a criação de verdadeiros novos paradigmas de desempenho ambiental.
notas
NA – A série de oito artigos intitulada “O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro” conta com os seguintes colaboradores: Amanda Ferreira, Ana Paula Mendes Silveira, Aparecida Ghosn, Beatriz Nascimento e Souza, Bruna Luz, Carolina Leme, Claudia Ferrara Carunchio, Cristiano Sato, Eduardo Gasparelo Lima, Erica Mitie Umakoshi, Guilherme Reis Muri Cunha, Julia Galves, Karen Daiane dos Santos, Laís de Gusmão Coutinho, Larrisa Azevedo Luiz, Monica dos Santos Dolce Uzu, Nathalia Lorenzetti, Paula Lelis Rabelo Abala, Sheila Regina Sarra e Sylvia Tavares Segovia.
NE – Este é o primeiro de uma série de oito artigos sobre o tema do “desempenho ambiental”. A série completa é a seguinte:
GONÇALVES, Joana; et. al. Desempenho ambiental dos escritórios em caixa de vidro. Uma visão geral (parte 01/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 158.08, Vitruvius, nov. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.158/7926>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios em caixa de vidro. Conforto térmico e desempenho energético (parte 02/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 160.02, Vitruvius, jan. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.160/7999>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. Controle térmico e da qualidade do ar em tempos de pandemia (parte 03/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 161.02, Vitruvius, fev. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.158/8024>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios em caixa de vidro. Luz natural e artificial (parte 04/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 162.08, Vitruvius, mar. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.158/8072>.
MICHALSKI, Ranny; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. Conforto acústico (parte 05/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 163.02, Vitruvius, abr. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.158/8073>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. A força de transformação de estratégias arquitetônicas. Drops, São Paulo, ano 21, n. 164.08, Vitruvius, maio 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.164/8186>.
MICHALSKI, Ranny; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. O mito das certificações verdes (parte 7/8). Drops, São Paulo, ano 21, n. 165.07, Vitruvius, jul. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.165/8199>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. Perspectivas futuras (parte 08/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 166.09, Vitruvius, jul. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.166/8202>.
1
PEREIRA, Daniela Cardoso Laudares. Iluminação natural em edifícios de escritório: metodologia para a avaliação do desempenho luminoso. Tese de doutorado São Paulo, FAU USP, 2017 <https://bit.ly/34G1pnR>.
2
ENEL. Tarifa de Energia Elétrica <https://bit.ly/2Gczena>
3
UK POWER. Compare energy prices per kWh <https://bit.ly/2JiPOmx>.
4
THALMAN, Ellen; WEHRMANN, Benjamin. What German households pay for power. Clean Energy Wire, 24 jan. 2020 <https://bit.ly/34IkaXP>.
5
KATS, Greg; ALEVANTIS, Leon; BERMAN, Adam; MILLS, Evan; PERLMAN, Jeff. The costs and financial benefits of green buildings: a report to California’s sustainable building task force, 2003 <https://bit.ly/35OaR83>; WARGOCKI, Pawel; SEPPÄNEN, Olli. Indoor climate and productivity in offices. Bruxelas, REHVA Guidebook, 2006.
6
CLEMENTS-CROOME, Derek J. Creating the Productive Workplace. Spon-Routledge, 2000.
7
ABNT. ABNT NBR 16401: Instalações de ar-condicionado – Sistemas centrais e unitários. Parte 1: Projetos de instalações. Rio de Janeiro, Associação Brasileira de Normas Técnicas, 2008.
8
ANVISA – Associação Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução-RE n. 09, de 16 de janeiro de 2003.
9
KATS, Greg; Greening our Built World: Costs, Benefits and Strategies. Washington DC, Island Press, 2010.
10
COTTA, João; VIEIRA, João Leal. Capítulo 3: O Desempenho Térmico de Ambientes de Trabalho nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. In: GONÇALVES, Joana; BODE, Klaus (Editores). Edifício ambiental. São Paulo, Oficina de Textos, 2015, p. 81-102; GALVES, Julia. Contemporary Translucent Buildings in São Paulo. Dissertação em Architecture and Environmental Design. Londres, University of Westminster, 2019; GONÇALVES, Joana Carla Soares; MARCONDES-CAVALERI, Mônica Pereira. Capítulo 2: Ventilação Natural em Edifícios de Escritórios: Mito ou Realidade? In: GONÇALVES, Joana; BODE, Klaus (Editores). Edifício Ambiental. São Paulo, Oficina de Textos, 2015, p. 57-80.
sobre os autores
Joana Carla Soares Gonçalves é arquiteta e urbanista pela UFRJ, mestre em Environment and Energy pela AA School of Architecture, doutora e livre-docente pela FAU USP. Orientadora dos programas de pós-graduação Arquitetura e Urbanismo da FAU USP e Architecture and Environmental Design, School of Architecture and Cities, University of Westminster, Londres. Profa. da AA School of Architecture, Londres. Diretora da Associação PLEA.
Roberta C. Kronka Mülfarth é arquiteta e urbanista pela FAU USP, mestre pelo Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Energia da USP, doutora e livre-docente pela FAU USP. Orientadora de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP e no Programa de Educação Continuada – PECE, no curso de especialização de Gestão em Cidades, junto a POLI USP. Vice-coordenadora do USP Cidades. Chefe do Departamento de Tecnologia da FAU USP.
Marcelo de Andrade Roméro é professor titular da FAU USP. Arquiteto e urbanista pela UBC, mestre, doutor e livre docente pela FAU USP, Pós-Doc pela CUNY (USA). Orientador e professor dos programas de pós-graduação da USP, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – IPT, da Universidade de Brasília, do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e da Peter the Great St. Petersburg Polytechnic University.
Ranny Loureiro Xavier Nascimento Michalskié engenheira mecânica pela UFRJ, mestre e doutora em engenharia mecânica pela COPPE-UFRJ. Professora doutora da FAU USP, onde atua como docente no ensino e na pesquisa, na graduação e na pós-graduação. Coordenadora da Regional São Paulo da Sociedade Brasileira de Acústica – Sobrac. Participa da elaboração de normas técnicas brasileiras em acústica da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
Alessandra Rodrigues Prata Shimomura é arquiteta e urbanista pela PUC-Campinas, mestre pela Unicamp e doutora pela FAU USP. Professora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e Orientadora do programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAUUSP. Advisor no Student Branch ArchTech Labaut da ASHRAE e Membro do Comitê PLEA (Passive and Low Energy Architecture) Chapter Latin America and the Caribbean (PLEA-LAC).
Eduardo Pimentel Pizarro é arquiteto e urbanista, mestre e doutor pela FAU USP. Professor da Universidade São Judas. É embaixador do LafargeHolcim Awards e já desenvolveu pesquisa na Architectural Association Graduate School, em Londres, e na ETH, em Zurique. Ganhador de prêmios como o Jovem Cientista (Brasília, 2012) e o LafargeHolcim Forum Student Poster Competition (Detroit, 2016).
Monica Marcondes-Cavaleri é arquiteta e urbanista, doutora e pós-doutora pela FAU USP. mestre pela AA Graduate School, Londres. Há 15 anos é consultora e pesquisadora em desempenho ambiental e eficiência energética da arquitetura. Especialista no uso de ferramentas avançadas de simulação computacional em avaliações dinâmicas e integradas de desempenho ambiental e eficiência energética. Auditora AQUA-HQE.
Marcelo Mello é engenheiro civil pela Politécnica USP, arquiteto e urbanista pela FAU Mackenzie, Mestre em Sustainable Environmental Design pela Architectural Association School of Architecture, Londres, e doutor pela FAU USP. Trabalhou com consultoria em sustentabilidade no Centro de Tecnologia de Edificações – CTE, e hoje atua como Diretor na Arqio Arquitetura e Consultoria.
João Pinto de Oliveira Cottaé arquiteto pela PUC-Campinas, mestre em Sustainable Environmental Design pela AA School of Architecture, Londres, e doutorando pela FAU USP. Sócio do escritório Oliveira Cotta Arquitetura. Em seu portfólio destacam-se o novo centro de P&D da empresa Siemens na Ilha do fundão, no Rio de Janeiro e a ampliação da estação de metrô Santo Amaro.
Juliana Pellegrini L. Trigo é arquiteta e urbanista pela FAU Mackenzie, pós-graduanda no programa de Arquitetura e Urbanismo da FAU USP, com foco em processo de projeto de edifício de alta desempenho. President Elect ASHRAE Brasil Chapter 2021/2022 e diretora do escritório Studio Symbios. Com mais de 20 anos de atuação, obteve publicações e premiações em concursos nacionais e internacionais.