A velhice, esse enfraquecimento progressivo das forças e das faculdades trazido pelos anos. Ficamos cada vez mais frágeis, vulneráveis, dependentes; vista, ouvido e memória que se perdem. Os velhos formam como que uma caricatura do que foram.
Provocam o riso: o tema da velha bêbada na escultura helenística, ao fazer rir, mostrava os males da decrepitude física e moral; a inenarrável velha surda e anquilosada do programa “A praça é nossa” expõe o grotesco do declínio físico. Aristófanes inventou o tipo do velho apaixonado por uma jovem, que subsistiu no teatro do ocidente até o início do século 19. Nada mais ridículo.
Ao contrário, a tragédia e o melodrama criaram a categoria do velho sério: o pai nobre; o sábio e conselheiro. Podia ser também intransigente, encarnando a autoridade dos preconceitos e da tirania moral. Giuseppe Verdi foi um que expôs, com obsessão, a velhice austera, impiedosa e cruel.
Os velhos também são onerosos. Como a esperança de vida não para de aumentar, custam cada vez mais à sociedade. São incômodos. Viram tiazinhas e tiozinhos zombados pelos jovens ou, no melhor dos casos, tratados com afeto condescendente. Quando pobres, esperam a morte chegar, encerrados que ficam em asilos que são “morredouros”.
Se o declínio e o fim inevitável são verdadeiros, o que enumerei acima formam lugares-comuns conduzindo, como sempre, ao preconceito. Os velhos, na sua diversidade, formam um grupo muito variado. Está aí a Erundina para comprovar.
Tenho que entregar esta coluna para a Ilustríssima até quarta-feira. Portanto, não faço ideia de como resultará a eleição no domingo. Que cai no dia dos meus 73 anos, e eu sei bem o quê, na verdade, gostaria de celebrar.
Mas o papel de Erundina nesta campanha já é extraordinário. Ela atropelou todos os preconceitos. Sua alegria vigorosa, sua energia, sua inteligência brilhante, estimulam tanto o velho desencantado quanto o jovem blasé.
Meu sentimento é de que nossa geração – a dela, a minha – em meio a contratempos e desastres próprios a todos os períodos da história, foi mais feliz do que a dos jovens de agora. Nós assistíamos a grandes modificações nos comportamentos coletivos, sobretudo no que concerne a liberdade sexual, os avanços feministas e antirracistas, e acreditávamos num futuro bom que viria para a humanidade.
Lembro-me do choque quando, nos anos de 1970, o movimento punk lançou o grito de “no future”. Como assim, não há futuro? Os punks estavam certos: aquele belo futuro que esperávamos não viria. Os jovens de hoje vivem num mundo cada vez mais incerto, inseguro e perturbado. Creio que a minha geração tem responsabilidade neste estado atual: podíamos combater, mas a certeza cega na vitória – em que alguns acreditavam com fé de cientista – criou uma confiança enganadora.
Em suas falas, Erundina retoma noções que políticos não usam muito: “queremos uma sociedade educada, civilizada”. Nisto, ela acrescenta, com insistência, o respeito pelo outro, a fraternidade, o humano. Ou seja, educar não e só mandar para a escola aprender a ler e contar; não é só ensinar o comportamento da “civilização” sofisticada. É recuperar o princípio da humanidade, o humanismo.
Não se trata de sentimentalidade genérica e ingênua. Trata-se de não perder o norte, de lembrar que, para além das pequenas estratégias políticas, há uma concepção maior e melhor de mundo.
Gosto de ouvir Boulos criticar o sectarismo e o autoritarismo, inclusive nas esquerdas. Porque o humanismo pressupõe levar em conta sempre o outro e o diferente.
Vivemos hoje o inferno do anti-humanismo. O presidente atual foi eleito com base na incitação do ódio, violento, físico, bestial. Autorizou o pior que existe em tanta gente: o racismo, os preconceitos, a ferocidade. O abominável assassinato racista ocorrido em Porto Alegre não é caso isolado. É o produto desse comportamento que infecta a atmosfera do país. Os assassinos não tiveram aquela educação e civilização humanistas de que fala Erundina. Neles, os valores humanos foram asfixiados pela alma que se tornou brutal.
Nós, os velhos, somos dispensados de votar. Há também a pandemia, e estamos nos grupos de riscos. Tomando os cuidados necessários, porém, o perigo se torna mínimo. Para alguns, esse esforço pode ser mais difícil. Mas lembremo-nos que, até o fim, nós, os velhos, frágeis e desdenhados, fazemos parte da humanidade e podemos agir para torná-la melhor. E assim, velhinhas, velhinhos, força! Vamos votar neste domingo.
nota
NE – Texto originalmente publicado na Folha de S.Paulo, caderno Ilustríssima, 29 nov. 2020, e republicado no Vitruvius com autorização do autor.
sobre o autor
Jorge Coli é historiador da arte e professor do IFCH Unicamp.