Depois de casada, minha mãe continuou a trabalhar, mas em casa. Costura, plissê, chapéus, enfeites. Com sete filhos, era difícil levar a vida sem uma ajudante, que chamávamos todos de empregada. Quando acontecia uma troca de empregada, havia sempre um parente com algum contato no interior de Minas, de onde vinham as moças sem perspectiva de trabalho por lá. A cozinha da casa era separada da copa, como deveria ser. Afinal, não era bom que a empregada ouvisse o que a família conversava à mesa (ah, havia também a questão da gordura da fritura...). Nossa casa tinha o quarto e o banheiro de empregada, lá no fundo, junto à área de serviço. Havia um acesso à essa área pela lateral da casa, mas que havia sido fechado para se criar um depósito aberto.
Quase em frente à minha casa morava um menino que nivelava de idade comigo, com quem eu brincava com outros vizinhos na rua: bente altas, mãe da rua, pega ladrão... Ele tinha uma irmã, e uma outra a quem chamavam de irmã de criação. Uma menina, um ou dois anos mais velha que ele. Sempre que ia lá, ela estava trabalhando na cozinha. O quarto dela ficava em baixo, e era acessado por fora, pela lateral da casa, saindo pela cozinha. Nessa lateral tinha um portãozinho que dava para a frente da casa, a entrada de serviço.
Quando eu viajava para o Rio de Janeiro, de férias para a casa de parentes, me chamava atenção nos prédios de lá a entrada de serviço separada desde o passeio, os elevadores independentes, as portas de serviço dos apartamentos (por menores que fossem) e as normas impressas fixadas deixando claro que as empregadas não poderiam usar o elevador social.
*
Nas últimas décadas, três fenômenos, destacadamente, têm gerado significativas transformações na maneira de se ocupar o espaço da moradia do brasileiro. De um lado, o aumento do valor real da mão de obra e o achatamento da classe média praticamente extinguiu a figura da empregada doméstica que dorme em casa; esse quadro ainda se mantém, majoritariamente, entre famílias de classe alta.
A diminuição da presença de uma auxiliar nas tarefas domésticas coincidiu com a ascensão da culinária como atividade social. Se antes a visita se sentava na sala de visita consumindo o que vinha da cozinha, hoje a visita é normalmente convidada a cozinhar.
Paralelamente, a informatização vem provocando um aumento contínuo do trabalho à distância, realizado em casa. E não apenas o trabalho, mas também o ensino – desde um breve tutorial a um curso superior – tem sido cada vez mais sendo travado à distância. À parte dessas atividades produtivas, também as relações sociais, como sabemos, disparam na modalidade virtual.
Marcelo Tramontano, há mais de vinte anos, já levantava como essas questões estavam – ou deveriam estar – afetando a solução espacial das moradias (1). Deveriam estar porque o mercado imobiliário brasileiro reage de maneira morosa e conservadora a todas essas inexoráveis mudanças; mercado esse que, por sua, vez é o reflexo da mentalidade do brasileiro. O quarto de empregada continuou e continua presente em grande parte dos projetos, ainda que espertamente conversível em outras funções, assim como a entrada de serviço. A solução de copa-cozinha integrada – típica solução americana do pós-guerra – vem crescendo, em contraposição à mais arraigada entre nós solução da casa com as funções tripartidas em social-íntimo-serviço – herança da casa burguesa europeia. Ainda assim, as cozinhas relutam muito em se abrir às salas; mesmo não havendo empregada, o arranjo não integrado mantém aquele que cozinha afastado do evento social gastronômico que se passa à mesa.
Se na cozinha a gourmetização da culinária e a troca do protagonismo de quem está ao fogão vem, ainda que lentamente, gerando alterações nas soluções espaciais da casa, o mesmo não se pode dizer dos cada vez mais necessários espaços de trabalho. Onde se trabalha em casa? Onde se estuda em casa?
*
A presente pandemia acelerou exponencialmente a já crescente demanda por espaços de trabalho e de estudo em casa. E, como vários já nos alertaram, o incremento do trabalho à distância é um caminho sem volta. Um caminho a ser cada vez mais adotado, tanto por empregados como por profissionais liberais. Nesse sentido, a pandemia não fez mais que turbinar um inexorável processo de virtualização das relações sociais.
O problema dos que trabalham à distância, sem a necessidade de contato com o público externo, pode, eventualmente, ser resolvido com adaptações em espaços internos da residência. Mas entre os profissionais liberais, aqueles que demandam contato físico com clientes encontram no mercado imobiliário raríssimas soluções que permitam que essas atividades funcionem a contento no contexto da espacialização da moradia. Essa limitação se faz especialmente marcante em edifícios de apartamentos.
Para esses, o ideal seriam soluções de projeto que permitissem, por um lado a fluidez do morador entre o espaço doméstico e o de trabalho e, por outro, o acesso de clientes de maneira independente, devidamente ambientada, sem prejuízo da intimidade do lar. Esta é uma solução funcional rara de ser encontrada. E é, a meu ver, um grande filão imobiliário para os próximos anos.
Se antes as moradias tinham acessos independentes, escondidos, para entrar e sair aqueles e aquilo que não deveria ser visto – os lixos da sociedade –, elas agora também demandarão acessos independentes, mas com outro status. Serão agora acessos para entrar e sair aqueles que trarão o sustento da casa. Se antes as famílias dependiam das empregadas em casa, muitas passarão a depender de clientes ali. Que agora terão um acesso digno. Dignidade que foi historicamente negada aos que antes trabalharam para essas famílias.
nota
1
Tramontano, Marcelo. Habitações, metrópolis e modos de vida – por uma reflexão sobre a habitação contemporânea. São Paulo, IAB-SP/Secretaria de Estado da Cultura, 1998. Disponível em: <www.nomads.usp.br/site/livraria/livraria_artigos_online01.htm>.
sobre o autor
Antonio Grillo engenheiro civil (Fumec, 1983), arquiteto (UFMG, 1985), especialista em Arquitetura contemporânea: projeto e crítica (IEC PUC Minas, 1999), com diploma DEA e doutor Teoría e Historia de la Arquitectura (ETSAB UPC, 2003 e 2005). Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC Minas desde 1985, coordenador dos cursos de especialização do IEC / PUC Minas Gestão de empreendimentos em arquitetura e construção e Sistemas estruturais-construtivos em arquitetura, líder do grupo de pesquisa do CNPq Estética e materialidade da arquitetura. Paralelamente às atividades acadêmicas, atua profissionalmente em escritório próprio, em projetos nas áreas de arquitetura, urbanismo e design, com algumas premiações em nível nacional.