Nos edifícios de escritórios em caixa de vidro, grande parte da radiação solar passa para o interior pela transparência do vidro. Afim de lidar com o excesso de luz no plano de trabalho, cortinas internas dos mais diferentes tipos são uma condicionante para o conforto visual dos ocupantes, contudo, em muitos casos escurecendo o interior, além de bloquear as vistas do exterior.
Para o aproveitamento da luz natural, as fachadas de vidros coloridos e/ou reflexivos são ainda piores, pois permitem a passagem da parcela da radiação associada exclusivamente ao calor (as ondas longas), ao mesmo tempo em que barram uma parcela significativa da radiação visível (a luz natural), também resultando no escurecimento do ambiente interno. Vale mencionar que existem disponíveis hoje, no mercado brasileiro, persianas internas do tipo rolô, que controlam a passagem da luz sem causar um bloqueamento total da mesma. No entanto, do ponto de vista da térmica, uma vez que a radiação solar atravessou a pele de vidro, a carga térmica de resfriamento vai ser equivalente àquela de ambientes sem a proteção solar interna.
Tecnicamente, o uso do sombreamento externo continua sendo a solução ideal para um melhor desempenho ambiental não só do ponto de vista da térmica, mas também da iluminação natural: tanto por barrar a componente de radiação direta (o sol propriamente dito), que traz riscos de ofuscamento; como por moderar a entrada da luz difusa do céu, no perímetro dos pavimentos, junto às fachadas.
Sobre os vidros de aspecto leitoso, como aquele chamado de U-glass, compostos de múltiplas camadas de vidro (que chegou recentemente à produção da arquitetura comercial brasileira), a hipótese seria de um bom controle do ofuscamento provocado pela incidência da radiação solar direta, provendo uma luz natural homogênea no interior, porém com as mesmas implicações de superaquecimento dos demais vidros duplos (comentadas nos textos anteriores desta série).
Somado a isso, nos edifícios de escritórios com fachada de vidro, os sistemas de iluminação artificial são normalmente projetados e dimensionados sem qualquer consideração a uma possível contribuição da luz natural. Isso se dá por vários fatores, incluindo a necessidade de se bloquear internamente o impacto da radiação solar incidente por meio de elementos de sombreamento interno (como já dito anteriormente); a profundidade do piso; e também a simples crença de que a iluminação artificial é sempre necessária, independente da época do ano, da hora do dia e do tipo de céu (nublado, parcialmente nublado ou claro). Falta aí o entendimento de quem ocupa o edifício e gerencia os seus sistemas, a respeito das possibilidades de economia de energia e das vantagens da luz natural para o bem-estar e a saúde dos ocupantes.
Uma série de estudos realizados nas últimas duas décadas, no Brasil e no exterior, comprovou que a exposição excessiva à iluminação artificial tem consequências relevantes para a saúde dos ocupantes. Pesquisas de campo em edifícios de escritório em cidades brasileiras mostraram que pessoas que trabalham somente com a presença da luz artificial têm mais chances de apresentar sintomas de transtorno psiquiátrico, depressão, ansiedade e prejudicada qualidade do sono (2). Por outro lado, outros estudos de caso demonstraram que um projeto de iluminação de qualidade pode reduzir dores de cabeça e os sintomas da chamada Síndrome do Edifício Doente em até 25%, além de aumentar a produtividade individual em até 23% e reduzir o consumo anual de energia do edifício em até 88% (3). Também se verificou que o nível de stress em pessoas expostas apenas à luz artificial durante o dia inteiro é maior do que naquelas que trabalham com uma combinação de luz artificial e natural (4).
Além das características da fachada, a proximidade da estação de trabalho com a fachada é um importante parâmetro do layout para o conforto visual devido, em particular, à possibilidade de comunicação visual com o exterior (5). Olhando para o projeto de arquitetura do edifício como um todo, a fachada de vidro não é o único componente do edifício responsável pela falta de aproveitamento da luz natural (e do pobre desempenho térmico, como já visto nos textos anteriores dessa série). A profundidade das conhecidas “plantas fundas” resulta em uma significativa parcela de área útil do piso longe da influência das fachadas e, por isso, afastada do alcance da luz natural.
Em termos quantitativos, enquanto a norma de desempenho, que trata da iluminação natural em ambientes de trabalho, fala em 500 lux de iluminância a ser mantida no plano de trabalho (6), uma gama de referências internacionais distintas apontam para a preferência dos usuários por condições variáveis, sendo a faixa de 300 lux a 3.000 lux caracterizada por nenhuma ou muito baixa probabilidade de necessidade adicional de iluminação artificial (7), o que levanta um questionamento acerca da pertinência do limite de 500 lux dado pela norma brasileira vigente, e a faixa de 100 lux a 300 lux, de uso complementar da luz artificial.
Estudos analíticos realizados para edifícios de escritório de fachadas de vidro na cidade de São Paulo, mas com proteção solar externa, identificaram um bom alcance da luz natural, de acordo com referências internacionais, mostrando iluminâncias mínimas variando entre 100 lux e 300 lux até 9 metros de profundidade, nas orientações Norte e Sul do edifício e profundidades entre 10 a 12 metros nos lados Leste e Oeste (8). Isto significa dizer que profundidades maiores do que essas, nas suas respectivas orientações, para o contexto climático e condições de céu de São Paulo, implicam em uma maior dependência da luz artificial nos escritórios.
É importante destacar que a forma e a profundidade dos pisos de um edifício têm um papel central na eficácia da estratégia de fachada e para o bom desempenho ambiental do edifício, englobando o térmico e o luminoso. Porém, no caso dos edifícios de “planta funda”, em que a influência da fachada é limitada a uma pequena porção da área útil do piso, melhorias no projeto de fachadas, como a inserção de estruturas externas de sombreamento visando o desempenho térmico e luminoso, são pouco significativas na redução na demanda de resfriamento e da iluminação artificial.
Em edifícios construídos na última década em São Paulo, por exemplo, constatou-se que os maiores têm pavimentos de até 30 por 70 metros (9), ultrapassando significativamente as dimensões adequadas para um satisfatório desempenho luminoso e também energético dos mesmos, independentemente da solução de fachada. Sendo assim, é preciso repensar a fórmula econômica da produção do edifício que leva à relação de máxima área útil de piso para a menor área de fachada, resultando em pavimentos fundos, de acesso restrito da luz e ventilação naturais, exclusivamente para economizar os custos de construção, ignorando as consequências no desempenho ambiental e energético do edifício final.
Mas qual o real acréscimo de área de fachada para uma relação mais favorável à luz natural? Tomando como exemplo um edifício de forma quadrada e com uma área de laje de 1.000 m2(com a face do quadrado de aproximadamente 32 metros), a mesma área útil em uma forma retangular com uma planta mais estreita (com faces de, aproximadamente, 18 por 55 metros), teria a área de fachada acrescida em cerca de 16,5%, em função do aumento do perímetro do pavimento tipo.
Pensando no valor do edifício e da área útil do pavimento tipo, o impacto financeiro deste aumento tem que ser contraposto aos benefícios na produtividade e na satisfação dos usuários, como já mencionado, e também na economia associada à redução da demanda energética. O fato inegável é que, em suma, o acesso à luz natural e vistas para o exterior resultam em ambientes de trabalho mais saudáveis, confortáveis e produtivos, justificando o valor ambiental e social de alternativas arquitetônicas às formas de plantas fundas e às fachadas do tipo “cortina de vidro”, sem tratamento contra o ofuscamento no interior.
notas
NA – A série de oito artigos intitulada “O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro” conta com os seguintes colaboradores: Amanda Ferreira, André Sato, Aparecida Ghosn, Beatriz Souza, Carolina Leme, Claudia Carunchio, Eduardo Lima, Erica Umakoshi, João Cotta, Julia Galves, Juliana Trigo, Karen Santos, Laís Coutinho, Larissa Luiz, Monica Uzum, Marcelo Mello, Nathalia Lorenzetti, Paula Abala e Sheila Sarra.
NE – Este é o quarto de uma série de oito artigos sobre o tema do “desempenho ambiental”. A série completa é a seguinte:
GONÇALVES, Joana; et. al. Desempenho ambiental dos escritórios em caixa de vidro. Uma visão geral (parte 01/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 158.08, Vitruvius, nov. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.158/7926>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios em caixa de vidro. Conforto térmico e desempenho energético (parte 02/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 160.02, Vitruvius, jan. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.160/7999>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. Controle térmico e da qualidade do ar em tempos de pandemia (parte 03/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 161.02, Vitruvius, fev. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.158/8024>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios em caixa de vidro. Luz natural e artificial (parte 04/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 162.08, Vitruvius, mar. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.158/8072>.
MICHALSKI, Ranny; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. Conforto acústico (parte 05/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 163.02, Vitruvius, abr. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.158/8073>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. A força de transformação de estratégias arquitetônicas. Drops, São Paulo, ano 21, n. 164.08, Vitruvius, maio 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.164/8186>.
MICHALSKI, Ranny; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. O mito das certificações verdes (parte 7/8). Drops, São Paulo, ano 21, n. 165.07, Vitruvius, jul. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.165/8199>.
GONÇALVES, Joana; et. al. O pobre desempenho ambiental dos escritórios por trás da caixa de vidro. Perspectivas futuras (parte 08/08). Drops, São Paulo, ano 21, n. 166.09, Vitruvius, jul. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/21.166/8202>.
1
Ver acima, na nota do editor, os demais artigos da série.
2
MARTAU, Betina Tschiedel. A luz além da visão: Iluminação e sua relação com a saúde e bem-estar de funcionárias de lojas de rua e de shopping centers em Porto Alegre. Tese de doutorado. Campinas, FEC Unicamp, 2009.
3
LOFTNESS, B.; HAKKINEN, O.; ADAN, A.; Elements that contribute to healthy building design. In: Environmental Health Perspective, n. 115, p. 965-970, 2007.
4
KERKHOF, G. A. “Licht en prestatie”, Proceedings. Symposium Licht en Gezondheid. Amsterdam, 1999.
5
NEWSHAM, G. R. C.; MANCINI, S.; BIRT, B. J.; Do LEED-certified buildings save energy? Yes, but.... Energy and Buildings, n. 41, p. 897-905. Elsevier, 2009.
6
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR ISO/CIE 8995-1:2013: Iluminação de ambientes de trabalho. Parte 1: Interior. Rio de Janeiro, 2013.
7
MARDALJEVIC, John; ANDERSEN, Marilyne; ROY, Nicolas; CHRISTOFFERSEN, Jens. Daylighting metrics: is there a relation between useful daylight illuminance and daylight glare probability? In: BUILDING SIMULATION AND OPTIMIZATION CONFERENCE, 1., 2012, Loughborough. Proceedings […]. Loughborough: Loughborough University, 2012, p. 189-196.
8
MARCONDES-CAVALERI, Monica Pereira; CUNHA, Guilherme Reis Muri; GONÇALVES, Joana Carla Soares. Iluminação Natural em Edifícios de Escritórios: Avaliação Dinâmica de Desempenho para São Paulo. In PARC: Pesquisa em Arquitetura e Construção, v. 9, p. 19-34, 2018.
9
PEREIRA, D. C. L. Iluminação natural em edifícios de escritório: metodologia para a avaliação do desempenho luminoso. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2017.
sobre os autores
Joana Gonçalves é arquiteta e urbanista pela UFRJ, mestre em Environment and Energy pela AA School of Architecture, doutora e livre-docente pela FAU USP. Orientadora dos programas de pós-graduação Arquitetura e Urbanismo da FAU USP e Architecture and Environmental Design, School of Architecture and Cities, University of Westminster, Londres. Professora da AA School of Architecture, Londres e diretora da Associação Plea.
Roberta Mülfarth é arquiteta e urbanista pela FAU USP, mestre pelo Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Energia da USP, doutora e livre-docente pela FAU USP. Orientadora de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP e no Programa de Educação Continuada – Pece, no curso de especialização de Gestão em Cidades, junto a Poli USP. Vice-coordenadora do USP Cidades e chefe do Departamento de Tecnologia da FAU USP.
Alessandra Shimomura é arquiteta e urbanista pela PUC Campinas, mestre pela Unicamp e doutora pela FAU USP. Professora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e orientadora do programa de pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP. Advisor no Student Branch ArchTech Labaut da Ashrae e Membro do Comitê Plea (Passive and Low Energy Architecture) Chapter Latin America and the Caribbean – Plea-LAC.
Ranny Michalski é engenheira mecânica pela UFRJ, mestre e doutora em Engenharia Mecânica pela coppe-UFRJ. Professora doutora da FAU USP, onde atua como docente no ensino e na pesquisa, na graduação e na pós-graduação. Coordenadora da Regional São Paulo da Sociedade Brasileira de Acústica (Sobrac). Participa da elaboração de normas técnicas brasileiras em acústica da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT.
Marcelo Roméro é professor titular da FAU USP. Arquiteto e urbanista pela UBC, mestre, doutor e livre docente pela FAU USP e pós-doutor pela Cuny (USA). Orientador e professor dos Programas de Pós-Graduação da USP, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo – IPT, da Universidade de Brasília, do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e da Peter the Great St. Petersburg Polytechnic University.
Eduardo Pizarro é arquiteto e urbanista, mestre e doutor pela FAU USP e professor da Universidade São Judas. Pizarro é Embaixador do LafargeHolcim Awards e já desenvolveu pesquisa na Architectural Association Graduate School, em Londres, e na ETH, em Zurique. Ganhador de prêmios como o Jovem Cientista (Brasília, 2012) e o LafargeHolcim Forum Student Poster Competition (Detroit, 2016).
Cristiane Sato é arquiteta e urbanista, mestre e doutora pela FAU USP. Especialista na área de Conforto Ambiental e Eficiência Energética das Edificações. Atualmente é Pesquisadora de Pós-DOC da FAU USP e Consultora de projetos de iluminação e eficiência energética.
Mônica Marcondes-Cavaleri é arquiteta e urbanista, doutora e pós-doutora pela FAU USP. Mestre pela AA Graduate School, Londres. Há 15 anos é consultora e pesquisadora em desempenho ambiental e eficiência energética da arquitetura. Especialista no uso de ferramentas avançadas de simulação computacional em avaliações dinâmicas e integradas de desempenho ambiental e eficiência energética. Auditora Aqua-HQE.
Bruna Luz é arquiteta e urbanista, mestre e doutora pela FAU USP, na área de Tecnologia da Arquitetura, com ênfase em Iluminação Natural e Eficiência Energética das Edificações. Tem pós-doutorado pela FEC-Unicamp, onde é professora colaboradora. Foi bolsista da Fapesp. Também é professora do Programa de Pós-Graduação da faculdade Belas Artes.
Guilherme Cunha é arquiteto e urbanista pela FAU USP. Cursou o programa de dupla formação FAU-Poli (USP). Foi bolsista de Iniciação Científica com apoio do CNPq e da Fapesp na área de Desempenho Ambiental e Eficiência Energética das Edificações, com ênfase em iluminação e térmica. Atualmente é consultor da Inocatech Engenharia.
Ana Silveira é aluna do curso de graduação em Arquitetura e Urbanista da FAU USP, com estágio na Polimi de Milão. Foi bolsista de Iniciação Científica com apoio do CNPq e da Sonfy na área de Iluminação Natural.