Em Rei Lear, uma das tragédias mais conhecidas de Shakespeare, um personagem afirma que é um castigo do tempo transtornado em que vivem, que os loucos guiem os cegos.
Essa passagem vem à lembrança quando não sabemos ao certo se estamos frente a tragédias ou óperas-bufas. Se tratamos de heróis, bons ou maus, às voltas com a inexorabilidade de seus destinos ou de personagens caricatos cujo destino é entreter pelo evidente ridículo de suas falas, figurinos ou atuações.
Os principais personagens deste tempo que nos tocou viver no ex país do futuro teriam tudo para provocar o riso se pudéssemos, ao final do espetáculo, voltar para casa e retomar o cotidiano de nosso trabalho, nossos amigos e nossas famílias.
Desnecessário lembrar que não é assim, quando atingimos, ante crescente indiferença, a marca, que deveria ser espantosa, de quatrocentos mil mortos.
Deveria, mas não espanta mais. Porque era esperada e prevista. Porque sabemos que será rapidamente superada. Porque nos acostumamos à ideia de que nem todo poço tem fundo ou ao realismo de saber que no mundo do bolsonarismo, a depender dele e da constelação de seus apoios, o fundo ainda está distante.
É tentador pensar em tragédia como imposição do destino quando lembramos que nesta semana se cumpriram quarenta anos do episódio do Rio Centro.
Em 30 de abril de 1981, um sargento e um capitão (sic) do Exército pretendiam detonar uma bomba durante as comemorações do Primeiro de Maio naquele que era o maior centro de convenções do país.
O objetivo do atentado era atribuir a culpa às organizações de esquerda armada, àquela altura já varridas do país, e assim retardar o chamado processo de abertura política.
O que poderia ter ocorrido se a bomba não tivesse explodido no interior do automóvel que os transportava, matando o sargento e ferindo gravemente o capitão. Outra bomba explodiu a quilômetros dali numa estação de energia elétrica, também sem maiores danos.
É difícil calcular o número de vítimas que teria causado o atentado, que ocorreu sete anos antes da expulsão de outro capitão, em outro mês de abril, por outra tentativa frustrada de atentado terrorista, em outra estação, agora de água.
O público do evento era estimado em 20 mil pessoas, menor que as 30 mil mortes que este capitão prometeu em sua campanha para a presidência e muito menor que as quatrocentas mil (assim, por extenso) que ele já contribuiu, forte e conscientemente, para causar.
Com o aplauso de alguns, contando com a indiferença de muitos, a impotência de tantos e a conivência interessada de outros, que são poucos, mas podem muito.
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos. Das versões cinematográficas de Lear, tem particular predileção pela de Kurosawa.