Sempre é bom lembrar que não é apenas no âmbito federal que prevalece a política de aproveitar a distração com a pandemia para fazer “passar as boiadas” da desregulamentação, para usar a infausta expressão cunhada pelo ilustre ministro de destruição do meio ambiente.
São Carlos também corre o risco de ver passar uma boiada e bem no centro da cidade.
Tornou-se público nesta semana que o presidente estadual do PTB, ingressou com uma ação direta de inconstitucionalidade pretendendo anular os efeitos da declaração de interesse histórico e cultural e correspondente possibilidade de isenção de IPTU, atribuído a mais de uma centena de imóveis num setor central da cidade, caracterizado desde o Plano Diretor de 2006 como Área de Especial Interesse Histórico-cultural.
O Promotor Flávio Okamoto alerta em entrevista que, se aprovada, poderemos ter na cidade “um festival de demolições” e o vereador Azuaite afirma, no site da Câmara Municipal, não ser aceitável “que interesse imobiliário se sobreponha fazendo uso de um partido político, que deve ser uma instituição compromissada com os interesses da coletividade”.
O pedido de liminar não foi atendido. Prefeitura, Câmara Municipal e Ministério Público estão chamados a se manifestar formalmente e não vamos aqui discutir os aspectos jurídicos.
Mas cabem alguns breves comentários que orientem o necessário debate público.
A declaração de interesse histórico-cultural e a possibilidade de solicitação de isenção parcial ou total do IPTU por parte do proprietário interessado em preservar seu imóvel, constituem um avanço em termos de política urbana e de preservação patrimonial, elaborado com competência e inovação pela nossa Fundação Pró-Memória.
A concepção tradicional de patrimônio prevê um instrumento de proteção, o tombamento, que, quando aplicado a imóveis privados pode constituir um ônus sem bônus. O proprietário tem que arcar com o custo da conservação e pouco ou nada recebe do poder público em contrapartida. É aí que a nossa legislação significa um grande avanço.
Também é preciso lembrar que a lei 10.257/01, chamada Estatuto da Cidade, regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Esses artigos reafirmam e atualizam o princípio de que a propriedade privada urbana deve atender sua “função social”, estabelecido em todas as constituições brasileira desde 1934.
Em outras palavras, a propriedade urbana individual não é absoluta e deve respeitar os interesses coletivos da sociedade.
Como exemplo didático lembremos que mesmo um terreno ou gleba vazio estão sujeitos a determinações legais (limites de ocupação, gabaritos etc.) que preservam interesses da sociedade.
Isto posto, vem as perguntas que não podem calar. Qual o interesse de um presidente estadual de partido, que não mora aqui, em atuar como o boiadeiro que viabiliza uma boiada de demolições em São Carlos?
E porque, contrariando a nossa lei maior, os interesses individuais de alguns poucos proprietários devem se sobrepor à valorização e preservação da memória e da qualidade de vida urbana que um dia fez São Carlos merecer o título de Capital do Clima?
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é professor titular do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da USP São Carlos.