Na graduação, quando praticamente tudo sobre arquitetura é visto pela primeira vez – ao menos na perspectiva da prática – lembro o quanto marcou-me uma aula de Teoria da Arquitetura em que discutíamos a relação entre solução formal e solução estrutural. Na introdução da explanação do professor, projetada na tela, a icônica foto da Loja Forma como um outdoor, à noite, sublinhada pelos rastros das sinaleiras dos veículos que por lá passam (1). Percepção perspicaz de Nelson Kon.
Durante a aula, pensava: “Uau! É incrível mesmo!”. Como um simples prisma – tal qual o via num primeiro momento – pode guardar em si tamanha complexidade construtiva? Como “ele” pensou nisso tudo? E lá estava semeada a admiração pela obra de Paulo. A admiração por Paulo.
Mais tarde, quando visitava o edifício com uma turma da faculdade, e podia vivenciar todas aquelas soluções perspicazes de projeto, lá estava eu, tocando as empenas e enfiando-me em frestas, procurando compreender as nuances da forma, da estrutura e das tecnologias que viabilizavam o espetacular resultado. Visitaríamos ainda outros ícones da obra de Mendes da Rocha, a Pinacoteca, o Museu da Língua Portuguesa, o Mube. A auto-indagação seria inevitável: “como alguém pode ser tão versátil”? Que sensibilidade para perceber o que “cabe” numa intervenção como a da Pinacoteca e numa proposição tão peculiar como a do Mube!
A admiração antes semeada, agora começava a gerar seus primeiros frutos pragmáticos. A Loja Forma seria caso de estudo para o Trabalho Final de Graduação. E daquelas “coincidências” da vida, sua produção residencial tornar-se-ia objeto de minha pesquisa de mestrado (2). Naturalmente não apenas eu, mas gente de grande envergadura intelectual buscava – e vem buscando – compreender o pensamento projetivo de Paulo, conhecer suas referências, sua vivência. Estes pesquisadores seriam a ponte na transmissão dos ensinamentos de Paulo a mim e a todos os demais estudiosos de sua obra. A eles, sempre a tempo, devo dizer que sou imensamente grata.
Através da transcrição de entrevistas publicadas em importantes títulos da crítica de arquitetura, bem como de análises apuradas sobre a vasta obra de Mendes da Rocha, fui conhecendo de modo mais aprofundado as investigações, as indagações e as referências que, de algum modo, norteavam o seu pensamento projetivo. Esse conhecimento trouxe e traz luz a diversas questões que vinham num crescente, tal qual avançava a minha atuação como arquiteta e novata pesquisadora.
Seu discurso e sua prática preenchiam – e vêm preenchendo – lacunas tanto de meu pensamento projetivo quanto das bases que o fundamentam. Passaram a tornar-se justificadamente essenciais a compressão da arquitetura como uma disciplina decorrente de imbricadas relações com o campo da engenharia. Termos como “engenhosidade humana” e recomendações como o quão importante é um arquiteto compreender assuntos do campo da física como a “mecânica dos fluidos”, estão presentes em meu modus operandi, tanto da prática quanto do ensino da arquitetura.
Paulo foi tão coerente e tão lúcido em sua longeva atuação como arquiteto, sabendo como poucos transpor a barreira do tempo e tudo o mais que ele traz a reboque – ao arrasto mesmo. Não ficou preso a dogmas, mas soube manter uma linearidade em seu pensamento projetivo ao longo dos anos. Como pude constatar em meus estudos, soube como poucos ler as especificidades dos contextos que envolviam cada um de seus projetos. Sua produção não é datada, já que não se apoia em variáveis externas ao campo da arquitetura.
Paulo soube explorar a tecnologia de cada tempo em que atuou. Não foi prisioneiro da tecnologia na ânsia de produzir algo sempre contemporâneo. Validava cada solução tecnológica a partir de sua replicação, revisitação, busca incessante da excelência, assim como o fazia com as soluções compositivas e técnicas. Não inventava e era sempre inventivo. Lá estava a “engenhosidade humana”.
Lúcido e visionário, dizia que a feiura das metrópoles contemporâneas é o que temos, sendo com tal realidade que os urbanistas devem trabalhar. Destacava que no oceano de complexidades e discrepâncias das cidades, saber ler e agir pragmaticamente era dever da arquitetura e do urbanismo de nossos dias. E dizia isso com tanta singeleza que encantava! Eu poderia ficar vendo e revendo suas entrevistas, lendo e relendo suas colocações, tamanha elegância com que sempre se posicionou e tamanha sensatez das suas justificativas.
Tenho tanto ainda para aprender com Paulo! Agradeço por tudo o que ele nos deixa materializado ou no campo das ideias. Feliz de nós, seus entusiastas, que recebemos tanto conteúdo para encher uma vida de conhecimento, não só na disciplina de arquitetura, mas na forma de ver o outro, na forma de contribuir com o lugar em que vivemos, como buscar incansavelmente a excelência, como ser disponível e gentil.
Obrigada mestre!
notas
NA – Agradeço aos mestres que me proporcionaram o contato e a investigação da obra de Paulo Mendes da Rocha, especialmente à Anna Paula Canez, Ruth Verde Zein, Maria Isabel Villac, Ricardo de Souza Rocha, Edson Mahfuz, Helio Piñón, Maria Alice Junqueira Bastos e Daniele Pisani.
NE – O texto é publicado em homenagem ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha, falecido no dia 23 de maio de 2021, aos 92 anos de idade.
1
Ver: MAHFUZ, Edson. Loja Forma, Paulo Mendes da Rocha, São Paulo, 1987. Série projetos exemplares, n. 1. Projetos, São Paulo, ano 11, n. 123.04, Vitruvius, mar. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/11.123/3818>.
2
AVILA, Débora Saldanha de. Habitações coletivas verticais de Paulo Mendes da Rocha: 1962 a 2004. Orientadora Anna Paula Moura Canez. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, UniRitter/Mackenzie, 2015.
sobre a autora
Débora Saldanha de Avila é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Propar UFRGS. Docente no curso de Arquitetura de Urbanismo da Faculdade Meridional – IMED em Porto Alegre/RS.