O debate sobre a manutenção ou retirada de algumas das estátuas e monumentos que ocupam nossos espaços públicos retorna à pauta após os movimentos sociais antirracistas eclodirem nos Estados Unidos e tomarem as ruas do mundo após o cruel assassinato de George Floyd no dia 25 de maio de 2020, homem negro vítima da violência de Estado. Derek Chauvin, policial branco, pressionou o joelho no pescoço de Floyd durante 8 minutos e 46 segundos. “I can’t breathe” (“Eu não consigo respirar”) foi a frase dita repetidas vezes por Floyd em seus últimos momentos, que se tornou o mote dos protestos ligados ao movimento “Black lives matter” (“Vidas negras importam”, em tradução literal) (1).
No conjunto de ações antirracistas insurgentes, a derrubada de estátuas de figuras escravocratas e racistas compôs a agenda dos protestos. Destaco três casos internacionais que foram notícia ao redor do globo, sendo que o primeiro caso ocorreu no dia 04 de junho de 2020, na Bélgica, e envolveu derrubada da estátua em homenagem ao Rei Leopoldo II, que comandou tropas que mataram e mutilaram milhões de pessoas no Congo nos anos de 1865 a 1909. O segundo caso semelhante ocorreu após 03 dias, e dessa vez envolveu a estátua do escravocrata Edward Colston, arrancada de seu pedestal e jogada em um rio da cidade inglesa de Bristol. Ainda na Inglaterra e como parte dos protestos antirracistas, a estátua de Winston Churchill, que foi um defensor do imperialismo britânico, recebeu a pichação “Was a racist” (“Era um racista”) (2).
Levando em conta que os monumentos são instrumentos de poder, memória, futuro e muitas vezes uma homenagem, lançar olhares contemporâneos sobre figuras questionáveis retratadas por meio de estátuas em espaços públicos não se trata de um anacronismo, mas sim de uma necessidade.
De um lado, os conservadores que contestam e classificam esses atos como vandalismo. De outro, os que apoiam os atos como ativismo/artivismo. Esse debate dicotômico parte da contestação popular sobre quais memórias devemos (e queremos) manter nas nossas praças e ruas. Sob o termo de “urban fallism” (ou “derrubacionismo urbano”, em tradução literal), essa prática contramonumental engendra uma das formas de contraposição ao patrimônio construído por meio de ativismos que visam redefinir as representações sociais sobre personagens históricos que impactam diretamente nos espectros simbólicos de ocupação do espaço urbano.
Além da derrubada/remoção de estátuas e monumentos, outra prática contramonumental emerge das intervenções artísticas urbanas, abordadas nesse artigo pelo viés da pichação e coberturas com tinta (geralmente vermelha, por remeter à imagem do sangue). Quando as dimensões e a escala do monumento impõem impedimentos à remoção, as intervenções com tintas são uma das principais alternativas.
Também conhecida como street art (ou arte de rua), as intervenções artísticas urbanas tencionam narrativas em espaços públicos por diversas práticas, como por exemplo, do graffiti, estêncil (forma vazada por meio da qual é usado o spray de tinta), projeções de vídeos ou imagens, colagens e demais intervenções efêmeras (lambe-lambe ou adesivos) (3).
As intervenções artísticas urbanas em monumentos possuem estreita relação com a derrubada/remoção, amparada nas releituras populares no presente sobre figuras do passado.
Exemplos brasileiros que utilizam a tinta como principal recurso de intervenção ocorreram nos anos de 2013 e 2016 e tiveram como alvo o Monumento às Bandeiras, obra do escultor Victor Brecheret localizada na praça Armando Salles, em São Paulo. O monumento de grande escala (11 metros de altura total, 8,40 metros de largura e 43,80 metros de profundidade) é uma homenagem aos bandeirantes, que segundo relato dos jesuítas, eram mais assassinos que heróis. Os relatos remontam à crueldade do modus operandi dos bandeirantes, que, na longa caminhada até São Paulo, chegaram a cortar braços de índios e também matar velhos e crianças que não conseguiam caminhar, dando de comida aos cachorros (4).
No ano de 2013, artivistas lançaram tinta vermelha sobre o monumento, representando o sangue de inocentes e trabalhadores que foi derramado pelos bandeirantes (5).
Em 2016, o Monumento às Bandeiras foi parcialmente coberto por tinta vermelha, verde e amarela, remetendo às cores da bandeira nacional e novamente ao sangue atrelado à história dos bandeirantes (6).
Giselle Beiguelman, Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ressalta que “apesar de a historiografia contemporânea ser rica em estudos críticos que esmiúçam” a associação dos bandeirantes com “a escravização e genocídio dos indígenas”, eles ainda continuam presentes não somente nos monumentos, mas sim “em um complexo de ruas e estradas que compõe uma espécie de rede imaginária de sua presença no tecido urbano e paulista” (7).
Na disputa de narrativas que permeia os espaços públicos, as intervenções artísticas urbanas propiciam forte viés performático e colocam outros repertórios estéticos capazes de promover a cidadania participativa. Exercemos nosso direito à cidade quando contestamos e agimos contra a presença de figuras escravagistas, colonialistas e opressoras. Assumindo um tom de fala Lefebvriano, os espaços urbanos são o lugar do encontro, da festa e, sobretudo, da reivindicação!
As pichações em estátuas e monumentos e os derrubacionismos compõe um quadro indissociável de ações no curso do direito à cidade, catalisando sentidos coletivos das urbes.
Embora não possamos perder de vista que a manutenção dessas figuras possa servir de estímulo à consciência crítica nos cidadãos e até propor discussões profícuas, a nossa convivência e conivência com essas memórias inconvenientes presentes no espaço público por meio dos monumentos refletem muitas heranças de um passado que insiste em vir à tona.
Dentre dicotomias que são fruto da nossa relação complicada com o passado, a iconoclastia da arte dos opressores por meio das práticas contramonumentais emergem, principalmente no Brasil, como uma alternativa decolonialista. Afinal: a mesma história que coloca o monumento no espaço público pode também retirá-lo. Os monumentos em espaços públicos pertencem a todos nós!
notas
1
Esse artigo foi inspirado pelas discussões estabelecidas no âmbito do evento ‘Arte e Monumentos: entre o esquecimento e a memória’, realizado online pela Universidade Federal de Goiás (UFG) entre os dias 29 de junho e 03 de julho de 2020. As palestras podem ser assistidas no canal do Núcleo de Investigação em Histórias da Arte – NIHA, no endereço eletrônico <https://bit.ly/3yk4oz5>.
2
G1. Manifestantes picham a frase 'era um racista' em estátua de Churchill em Londres. Portal Globo, 08 jun. 2020 <https://glo.bo/3uV5Mq5>.
3
FILARDO, Pedro. Pichação (pixo). Histórico (tags), práticas e a paisagem urbana. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 187.00, Vitruvius, dez. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.187/5881>.
4
REDAÇÃO. Bandeirante era assassino do sertão São Paulo. Folha de S.Paulo, 25 jan. 2011 <https://bit.ly/3hDYROh>.
5
UOL. Monumento à bandeira é pichado e sujo por tintas <https://bit.ly/3uYd1NP>.
6
REDAÇÃO. Estátua do Borba Gato e Monumento às Bandeiras são 'pichados' em SP. Folha de S.Paulo, 30 set. 2016 <https://bit.ly/3buGEP6>.
7
BEIGUELMAN, Giselle. Ataques a monumentos enunciam desavenças pelo direito à memória. Folha de S.Paulo, 17 mai. 2021<https://bit.ly/3tP58ZO>.
sobre a autora
Bianca Siqueira Martins Domingos é doutoranda em Planejamento Urbano e Regional na Universidade do Vale do Paraíba – Univap. Mestre em Desenvolvimento, Tecnologias e Sociedade pela Universidade Federal de Itajubá – Unifei. Docente e Coordenadora de Relações Institucionais e do Serviço Eletrônico de Editoração de Revistas no Centro Universitário Teresa D’Ávila – Unifatea.