Bem-aventurados os que nunca tiveram uma crise de enxaqueca, pois não suportaram o sofrimento por horas, ou até dias. Janelas e cortinas são fechadas: a luz e o som são inimigos da cabeça à deriva. Para este pobre paciente, é impossível pensar, amar, comer, conversar, ler. Impossível desfrutar da beleza do mar, de uma borboleta, de uma flor, do riso de uma criança. Quase impossível viver, tal é a intensidade da dor.
João Cabral de Melo Neto sofria desta doença crônica. Quando não queria dar entrevista ou participar de um evento, ele inventava uma enxaqueca. Essa mentira era apenas circunstancial: o grande poeta deu à nossa literatura “Num monumento à aspirina” um poema que traduz a verdade profunda daquela dor.
E não é verdade que, em algum momento, pais e filhos probos lançam mão de mentirinhas?
Certas mentiras plausíveis não causam danos a ninguém, ao contrário das grandes e pequenas mentiras do poder, que podem provocar tragédias avassaladoras. Em março de 2003, uma coalização comandada pelo governo norte-americano de George W. Bush bombardeou e invadiu o Iraque, causando centenas de milhares de mortes e a destruição desse país. Relatórios do serviço de inteligência britânica negaram que o Iraque do ditador Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa, e provaram que este país nada tinha a ver com os ataques de 11 de setembro de 2001 às torres gêmeas em Nova York. Além disso, em julho de 2016, o Relatório de Investigação sobre o Iraque – Relatório Chilcot – questionou os argumentos do então primeiro-ministro britânico Tony Blair, que se unira a Bush e seus falcões para bombardear o país árabe. Uma das conclusões do inquérito coordenado por sir John Chilcot é que a guerra era desnecessária. Blair foi a público para pedir desculpa. O jornalista e escritor Robert Fisk (1946-2020), o mais premiado correspondente no Oriente Médio, declarou com um humor britânico: “Se o Iraque fosse o maior exportador de batatas, não teria sido destruído”.
No dia 6 de maio, o jornal Haaretz noticiou que mais de 185 israelenses – cientistas, professores, escritores, militares da reserva – assinaram uma carta alertando o Tribunal Penal Internacional (Haia) a não aceitar as conclusões do governo de Israel sobre supostos crimes de guerra cometidos contra a população civil palestina da Faixa de Gaza, de Jerusalém Oriental e da Cisjordânia. Esta carta – com uma dezena de signatários premiados – pede ao TPI que as organizações de direitos humanos israelenses investiguem a sistemática discriminação contra os palestinos nos territórios ocupados e examinem crimes específicos, tais como: apropriação de terras palestinas para a construção de colônias, e várias formas de injustiça sancionadas por tribunais militares de Israel. Aliás, não apenas militares, como destacou o Haaretz num editorial (8/6/21): “Por décadas, os tribunais têm se baseado num sistema legal discriminatório. Mas é um sistema difícil de defender no âmbito internacional, e não pode ser aceito como algo lógico ou moral por qualquer pessoa sensata”.
Nesse sentido, o Relatório Chilcot e ONGs como o B’Tselem (Centro de informações israelenses para os direitos humanos nos territórios ocupados) questionam as mentiras de governantes e buscam recuperar constantemente uma verdade histórica.
Segundo o jornal The Washington Post, o ex-presidente Trump tinha divulgado mais de 16 mil notícias falsas ou enganosas até janeiro de 2020. O presidente do Brasil e seu “Gabinete do ódio” parecem inspirar-se nessas mentiras e, com frequência, as copiam e divulgam em suas redes sociais. Certamente vão continuar a divulgar outras fantasias criminosas até o fim desse primeiro e, espero, último mandato presidencial.
Grandes e pequenas mentiras de governantes manipulam uma parte da sociedade e falsificam a realidade. Nos depoimentos de várias autoridades governamentais convocadas pela CPI da pandemia, as mentiras alternavam com falas contraditórias, como se péssimos atores e atrizes encenassem uma peça farsesca.
O que de positivo se pode esperar de um governo movido pela mentira? Até mesmo a agenda, dita liberal, mais parece conversa fiada. Não há agenda nem projeto para o País. Há, sim, fake news em profusão e um vazio de propostas para a sociedade brasileira. O que predomina é o caos. Nesse caos, assistimos a uma desmontagem sistemática de conquistas republicanas, muitas ainda incompletas ou em gestação, pois a construção de um estado democrático sólido é árdua e incessante. Não serão quatro anos perdidos, e sim décadas.
À frente de tudo isso, um presidente desqualificado que, desde o dia da posse, só se preocupa com sua reeleição, usando um discurso absurdamente mentiroso e cínico de que sua própria eleição em 2018 foi fraudada e de que haverá fraude em 2022. Ele diz sem rodeio que será reeleito a qualquer custo, insinuando a adesão de policiais, milicianos e extremistas à tomada do poder. Esse talvez seja o verdadeiro e único projeto do senhor Messias, de sua prole e de bajuladores interesseiros, todos sem um pingo de vergonha, mas que envergonham a muitos brasileiros e ao mundo.
nota
NE – Publicação original no jornal O Estado de S. Paulo, 25 jun. 2021.
sobre o autor
Milton Hatoum, arquiteto formado na FAU USP, é escritor, autor de um Relato de um certo Oriente, Dois Irmãos, Cinzas do Norte e Órfãos do Eldorado e diversos outros livros, ganhadores do Jabuti e outros prêmios importantes.