Segundo os dicionários, paiol é uma edificação para depósito de pólvora, munições e outros instrumentos de guerra. Ou, então, armazém em que se depositam produtos agrícolas. Já para o arquiteto e urbanista Jaime Lerner poderia ter outros e múltiplos significados. Por acreditar na refundação permanente das cidades e de seus artefatos, ele, quando prefeito de Curitiba no seu primeiro mandato, transformou, como se um mágico fosse, um velho paiol num encantado e acolhedor teatro, centro de artes e exposições. Mais do que um marco daquela gestão, um exemplo concreto de como se pode, com pouco investimento, ressignificar lugares, lhes emprestando novas funções e possibilidades. No caso, um celeiro de ideias tomando lugar de velhos cartuchos ou espigas de milho.
E não parou por aí. Fez da aposta de tirar maior e melhor proveito do que se tinha as mãos, um modo de vida e um jeito próprio de fazer urbanismo para cidades reais e em fase de crescimento. Reinventá-las a partir de si mesmas e de seus ativos, principalmente aqueles em desuso ou mal utilizados. Sempre correndo atrás do tempo numa incansável pegada de fazer o futuro ser hoje. Mais que realizável, palpável e sentido por todos. Tipo não é preciso esperar tanto para se viver melhor na cidade, nem tão pouco ter muito dinheiro para promover mudanças capazes de fazer a vida das pessoas mudarem de fato, já e de modo permanente.
Assim, conjugando o verbo “cidade-se" no futuro do presente, transformou Curitiba na meca das realizações possíveis. O calçadão da rua 15 foi instalado durante um feriadão, contrariando lojistas e um clube de proprietários de automóveis. Virou ícone. Espalhou-se pelas cidades brasileiras como se atestado de modernidade fosse. Já cinquentão, ainda andava a se reinventar. Um de seus edifícios emblemáticos é cenário até hoje de uma tocante cantata de Natal. Tem DNA de melhorar sempre e cumulativamente como era do gosto e da vontade do seu criador. Seguirá, por isso, sendo o que for possível ser. Os tempos são outros e os negócios também, porém ganhou o destino de cartão-postal e eles não costumam envelhecer.
O Ligeirinho é uma das grandes invenções do humanismo contemporâneo. Batizado com pompas e circunstâncias pelas tecnologias de gestão mais modernas de BRT (Bus Rapid Transit), o sistema de transporte de Curitiba, instalado hoje em mais de 200 cidades no mundo, é quase como botar um ovo em pé. Já existiam os desejos de viagem das pessoas, já estavam lá as ruas e sobre elas circulavam os ônibus. Fazer mais com menos norteou também essa revolução urbanística. Dando vida e fisionomia nova a capital do Paraná, graças ao estabelecimento das faixas exclusivas para os ônibus, da transformação de pontos de parada em estações de embarque e desembarque, com pagamento prévio das passagens, e juntando de modo articulado um ônibus a outro de modo a aumentar sua capacidade, foram medidas relativamente simples que fizeram o metabolismo da cidade funcionar melhor e de modo mais barato e atendendo ainda mais gente. Um verdadeiro achado.
O aproveitamento de grandes propriedades, outrora fábricas, olarias ou chácaras, em parques urbanos funcionando concomitantemente como "polderes naturais" para retenção das águas de chuva, foi outra das invenções de Lerner de baixo custo, mas de grande serventia. Hora dando vida a uma pedreira abandonada, hora plantando uma casa em homenagem aos colonizadores ou fazendo brotar uma Ópera de Arame, dando novos usos a esses pedaços largados da cidade, configurando ações de retrofit de espaços urbanos. Lições de intervenções rápidas e de apropriação imediata pelos cidadãos.
Foi semeando esse modo de reinventar a cidade onde era chamado ou suas realizações chegavam. Teve o condão de mostrar como se pode planejar e mudar os rumos de uma cidade real. Contrapor a maquete do Plano Diretor de Curitiba, traçado no final dos anos 60 do século passado com imagens do que ela é hoje, é prova de que as cidades podem ser reinventadas. Lerner que agora nos deixa, é o responsável maior por essa certeza. É ela que nos enche de esperanças de dias melhores para as cidades e para o nosso país.
sobre o autor
Vicente Loureiro, arquiteto urbanista e coordenador da Câmara Metropolitana no governo Jaime Lerner.