Era um terreno estreito e comprido, com duas traves sem rede, feitas de ripas remendadas; o piso de barro e pedrinhas, levemente inclinado para o centro, virava um riacho nas chuvas fortes de dezembro; mesmo assim, a gente batia bola naquele campinho nas tardes quentes da infância, que já tropeçava nos primeiros passos adolescentes.
Nos jogos valia tudo: chutão na canela, carrinho, rasteira… Os mais indolentes ficavam na banheira, e não eram poucos os arranca-tocos: curumins com pendor à luta corporal. Para eles, o campinho era uma arena: davam pontapés sem bola, mas se acovardavam quando Olibe, o único rapaz da turma, protegia os mais fracos, franzinos de dar dó. Ele era peixeiro, e madrugava no mercado municipal. Exceto o Olibe, éramos todos pequeninos humanos. Como seriam os grandes?
Num sobrado humilde, vizinho ao terreno, moravam um homem de uns trinta anos e uma moça de uns dezenove ou dezoito. A gente nada sabia da vida deles. Aliás, nem da nossa. Os vizinhos eram apenas uma visão distante e rara. Quando ficavam juntos na janela do sobrado, viam o corre-corre, os encontrões, as cotoveladas, as pernas esfoladas. E viam o Olibe, que mais apartava brigas do que jogava. Ele não queria ser juiz, talvez por temer a injustiça. Falava pouco, e seu jeito sóbrio, sem ser solene, era um aceno à paz. Poucas palavras bastavam.
Então aconteceu algo estranho. No primeiro sábado de dezembro, a bola de couro surrada caiu na casa vizinha. Nas outras vezes, alguém – o homem ou a moça – devolvia sem demora a esfera marrom. O que teria acontecido?
As janelas do sobradinho, fechadas. Ninguém respondeu aos nossos gritos: devolve a bola. Um par de pequenos valentões foi bater à porta deles. A dupla voltou calada, sem a bola. Esperamos, com uma impaciência que crescia com o calor e com a inação. Um insolente pegou uma pedra, Olibe o encarou, e dois objetos caíram no campo quase ao mesmo tempo.
Era a bola, só que cortada ao meio. Ficamos olhando sem ação as duas metades murchas. No nosso íntimo, a gente também murchava. No sábado seguinte, a crueldade foi repetida com uma bola de plástico.
Olibe não ia fazer nada?
“No próximo jogo vou dar de Natal uma bola de couro novinha”, ele disse. E advertiu: “se os valentões agredirem os curumins, vão ser expulsos”.
Cumpriu a promessa: pôs a bola no meio do campinho e foi embora. Quer dizer: foi e não foi. Ele e a moça, abraçados na janela, assistiram à pelada natalina. Foi nossa primeira disputa de verdade, sem agressões gratuitas e sem medo de perdermos a bola.
nota
NE – publicação original do artigo: HATOUM, Milton. Crônica de um Natal distante. O Estado de S.Paulo, Caderno 2, 19 dez 2021.
sobre o autor
Milton Hatoum é autor dos romances Dois irmãos, Cinzas do Norte e A noite da espera, entre outros.