Conheci o Vivaldo em 1964 quando entrei na FAU USP e logo nos tornamos amigos. Eu, recém-saído da adolescência, ele um ano mais velho. No entanto, já era uma pessoa adulta e passei a admirá-lo pelo seu caráter e engajamento político, pois mal entramos na faculdade, caiu sobre nossas vidas o golpe de estado em 1º de abril de 1964. E durante os cinco anos que estudamos juntos, nossa amizade tornou-se única. Sob sua inspiração passei a participar, com as armas que um estudante podia ter, do combate à ditadura. Passeatas eram quase cotidianas, a tomada do prédio da faculdade para reivindicações estudantis e, o que considerávamos uma aventura perigosa – e, portanto, emocionante –, a pichação dos muros das fábricas com as famosas frases “Abaixo a ditadura”, “Mais pão menos canhão” e tantas outras. Para tal tarefa, eram recrutados sobretudo os estudantes de arquitetura por terem uma letra mais caprichada, mas não que não garantiam que fossem os mais corajosos... E nestes atos, invariavelmente estávamos sempre juntos.
Nos feriados escolares, nossa turma sempre tratava de descolar uma “viagem de estudos” a Brasília e a Ouro Preto, este último nosso destino predileto. E foi em uma dessas viagens a Minas Gerais que fiz uma fotografia que, transformada em pôster com projeto gráfico do Vivaldo, venceu uma premiação em um concurso organizado pela prefeitura da cidade.
Ainda estudantes, na companhia de outros colegas abrimos um escritório. Primeiro na rua Augusta e depois na rua Maranhão para, principalmente, desenhar plantas, cortes e elevações para os arquitetos. Isto na época em que tudo era feito “a mão”, com papel vegetal, caneta Graphis, tinta nanquim, régua T etc. O Vivaldo era um dos mais habilidosos no manejo desses aparatos e já começava a revelar e aprimorar seu talento como designer gráfico. Foi também quando comecei a levar as primeiras broncas de meu amigo, quando me delegavam algum trabalho na área do design, para a qual eu não tinha absolutamente nenhuma inclinação. As broncas não foram poucas, mas nunca houve nenhuma rusga entre nós. Por outro lado, seus elogios dedicados às minhas fotografias, eu sabendo de seu rigor e experiência, deixavam-me seguro de que estava acertando. Vivaldo tinha esta característica: quieto, silencioso, rigoroso e extremamente justo. Além de amigo fiel.
Assim, logo que nos formamos, iniciou-se uma parceria duradoura. Durante quase cinquenta anos participamos de diversos projetos de livros e de exposições com fotografias e projetos gráficos da dupla. Boa parte desses projetos foram editados por Vicente Wissenbach, pioneiro em publicações de arquitetura no Brasil.
Saindo da faculdade, nunca deixamos de nos encontrar. Não só por conta de trabalhos, mas também com enorme frequência na companhia de outros colegas, alguns já casados, para jantar no Patachou ou no Regência, nossos restaurantes preferenciais da rua Augusta. Pois foi no Regência que vi o Vivaldo, um tímido neste quesito, pegar na mão da Nina nossa colega de turma na faculdade. Assim foi o início de um namoro que resultou em casamento do qual eu e Satiko seríamos padrinhos. Perdemos esta oportunidade por estarmos na época fora do Brasil.
Mas não faltaram outras ocasiões para demonstrações de afeto, dedicação e das inúmeras habilidades deste meu amigo. Nas frequentes viagens que nossa turma fez a Ubatuba hospedando-se (na verdade acampando...) em uma antiga garagem de barcos transformada em “casa de hóspedes”, o Vivaldo era o organizador da bagunça e cabia a ele, além de inúmeras tarefas, passar a tarrafa para apanhar alguns peixes e organizar a caça aos caranguejos e pitus no riacho que passava nos fundos da nossa hospedaria. Em seguida cabia também a ele, quando necessário, acender uma fogueira (foi um escoteiro habilidosíssimo) e preparar o almoço por ser um excelente cozinheiro.
Uma de nossas aventuras, que pensávamos que seria das mais cosmopolitas, foi montar uma exposição sobre o patrimônio arquitetônico brasileiro na embaixada do Brasil em Paris, o que a princípio nos deixou animadíssimos. Mal prevíamos que chegando lá enfrentaríamos o mal humor do funcionário da embaixada que reclamou, já no aeroporto, que estávamos o obrigando a trabalhar em um domingo. E ao chegarmos na embaixada percebemos que não havia ninguém para carregar ou pelo menos nos ajudar a carregar os diversos caixotes com os painéis para o segundo andar do petit château onde ocorreria a exposição. Além da tarefa de transportar tudo “no muque” pelas escadarias da embaixada, havia ainda outro problema: instalar os painéis que não eram poucos, nas paredes da galeria. A presença de uma equipe especializada para esta tarefa, nem pensar. Mas isto não era questão, pois Vivaldo era um especialista na área. Definir o nível exato dos painéis sem a ajuda desses aparelhos mágicos de hoje em dia que emitem raios laser para todos os lados, não seria problema para o ex-escoteiro. Tudo foi resolvido com a máxima precisão, com uma trena, linha de costurar e fita crepe. Pendurar os painéis na posição exatamente horizontal seguindo a linha de costurar, também não se tornou um problema. Meu amigo dominava como poucos a arte de dar nós complexos que jamais eu soube repetir naqueles escorregadios fios de nylon, mantendo sempre a horizontalidade dos painéis. Eu tentava ajudar, prestando atenção em tudo e procurando não errar para não levar uma de suas broncas. Não dei muito trabalho e finalmente a exposição ficou nos trinques. Apesar dos problemas enfrentados, houve o lado positivo da viagem. Afinal, Paris não é uma cidade onde se vai somente para montar uma exposição e aproveitamos que estávamos por ali para conhecer belas obras de arquitetura do passado, da arquitetura contemporânea e até visitar a Monalisa, por que não? E ainda, Paris foi também a cidade perfeita para conferir a qualidade dos vinhos. Por conta disso, conversamos e rimos muito nos cafés parisienses, descontraídos e certos de termos realizado um bom trabalho.
Esta operação se repetiu inúmeras vezes em exposições de minhas fotos realizadas na Pinacoteca, Masp e outros locais em que o Vivaldo estava sempre presente me dando aquela força.
Atravessamos a maturidade e o início da velhice sempre unidos. Nunca houve ressentimentos ou qualquer nuvem a embaçar nossa amizade nestes quase sessenta anos de convívio.
Pois neste último dia 17 de dezembro, meu amigo faleceu depois de um longo sofrimento resultado de um acidente doméstico que não deveria ter acontecido. Tenho certeza que nenhum de nós, seus amigos, esquecerão o Vivaldo com sua lealdade, retidão de caráter, competência profissional e tantas outras qualidades. Enfim, Vivaldo era a pessoa que quando estávamos ao seu lado, sabíamos que estávamos do lado certo.
sobre o autor
Cristiano Mascaro é arquiteto formado pela FAU USP e fotógrafo independente. Seu trabalho já foi celebrado por importantes instituições brasileiras, como a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand – Masp, o Museu da Imagem e do Som – MIS, e também internacionais, como o Deutsches Architekturmuseum, em Frankfurt, na Alemanha.