Horum omnium fortissimi sunt Belgae, propterea quod a cultu ataque humanitate proviciae absunt (“De todos aqueles os mais bravos são os Belgas, porque eles ficaram mais afastados da polidez e da civilização”).
Júlio César.
Os belgas são internacionalmente conhecidos pela qualidade do seu chocolate e pela variedade e qualidade das suas cervejas, porém, é menos conhecido pelas disputas e querelas das duas comunidades linguísticas que dividem o país. No Sul e em Bruxelas a língua oficial é o francês e no Norte o neerlandês. E ainda há uma comunidade (cerca de 1% da população) que tem no alemão a sua língua materna e administrativa. E quase esquecíamos de mencionar o fato de que em Bruxelas há uma minoria de neerlandófonos, o que faz com que esta cidade-região tenha o estatuto — ao menos oficial, de bilíngue. Poderíamos afirmar que isto não representa, em si, um problema, uma vez que há inúmeros países nos quais coexistem a prática de diversas línguas, e o Canadá e a Suíça são os exemplos mais conhecidos, mas não são os únicos. Contudo, os belgas vivem em conflito interno desde 1830, quando se separou dos Países Baixos para formar um país, pouco após as guerras napoleônicas.
Houve a chamada Guerra Escolar, ou melhor as Guerras Escolares, a primeira durou de 1879 a 1884 e a segunda durando nove anos, de 1950 a 1959. E em que consistia a Guerra Escolar? Com ensino então unificado, tratava-se de uma discussão sobre o papel do ensino religioso, com a maioria dos políticos do Norte pretendendo uma espécie de status quo e os políticos do Sul que pretendiam torna-lo facultativo. Não houve nem mortos e nem feridos, e a guerra foi resolvido por meio de um pacto; sendo mais um dos chamados “compromisso à belga” (1). A questão sobre o ensino religioso estava, então, resolvida, mas a paz voltaria a reinar entre os belgas?
Não exatamente, pois houve a chamada Questão Real, que dividiu no início dos anos 1950 o Norte e Sul do país, quando após um referendo popular os belgas optaram pelo retorno do soberano Leopoldo III, até então exilado na Alemanha. Mas como sabemos, o termo “belga” apenas esconde o fato de que coabitam o país duas diferentes comunidades linguísticas (aqui estamos abstraindo os belgas de língua alemã) e duas diferentes sensibilidades. Não podemos deixar de mencionar a clivagem que existia até esta época: o Norte rural e católico e o Sul industrializado e socialista, apenas para simplificar uma realidade que é bem mais complexa. Os flamengos (Norte) decidiram pela volta do rei, e os valões (Sul) decidiram pela sua abdicação. Os primeiros, sendo mais numerosos, determinaram a volta de Leopoldo III. Todavia, os valões estavam convictos a não aceitar este fato, e o país entrou — quase — em uma guerra civil, com atentados nos quais houve mortes e uma greve geral. Ao fim das escaramuças que quase cindiram o país de fato, o rei foi levado a abdicar em favor do seu filho, que teve o título de Balduíno I (2).
Poder-se-ia afirmar, então, que não haveria mais atritos entre o Sul e o Norte? O mais correto seria afirmar que os conflitos entre as duas comunidades é uma questão existencial, isto é, a razão de ser do país. E isto alcança até fatos banais ligados ao cotidiano. Por exemplo, há um córrego que corta duas províncias, o Brabão Flamengo e o Brabão Valão, e quando os valões pescam servindo-se de iscas vivas (de qualquer cor) e atravessam a fronteira interprovincial têm que usar, imperativamente e, por lei, iscas vermelhas (asticot rouge). E se ultrapassam a fronteira sem perceber, podem ser multados, e o simples exercício do lazer pode se transformar em uma futura dor de cabeça, com o envolvimento, inclusive, de políticos: “Ou então, foi Jean-Pierre Coffe que teria um dia dito ao Ministro-Presidente flamengo: ‘As iscas vermelhas são uma meeeerda!’” (3). Ou seja, a Guerra dos Belgas vai de questões realmente importantes, como o funcionamento do Estado, até questões mesquinhas e mesmo francamente ridículas, como o citado aqui e tantos outros que poderíamos igualmente citar, como o nome das cidades: toda cidade belga tem dois nomes, um em francês e outro em neerlandês. E quando uma placa de trânsito muda o nome da cidade, consoante o território e o seu estatuto linguístico, Liège, por exemplo, subitamente torna-se Luik, e não poucos turistas estrangeiros ficam desorientados. Um francês narrou o seguinte episódio, indo de automóvel a uma cidade valona, não a encontrava porque em toda placa de trânsito constava o nome “Bergen”, que vem a ser… “Mons” em neerlandês, a cidade que então procurava.
Para concluir, pode-se afirmar que não foi com o intuito de desorientar turistas e escolher a cor da isca para a pesca que os “pais fundadores” do Reino da Bélgica tinham em mente por ocasião da chamada Revolução belga. Talvez eles tivessem algo mais eloquente e grandioso em mente.
notas
1
A este respeito ver: DEPREZ, Gérard. La question scolare et as pacification <https://tinyurl.com/3re34rhd>.
2
A este respeito ver: La Libération engendre la “Question Royale”. Les Belges, leur histoire <https://tinyurl.com/yc4wfvf7>.
3
Quand la guerre des Belges fait blanchir l’asticot. Un Blog De Sel <https://tinyurl.com/mry7revh>.
sobre o autor
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima é arquiteto e urbanista, mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Autor do livro Arquitessitura; três ensaios transitando entre a filosofia, a literatura e arquitetura. Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá.