A partir dos anos 1960, adentrando os 1970 e 1980, a reflexão no nosso campo tomou um grande impulso, caracterizado pelos aspectos: a) a sensação de que carecia virar a página do Movimento Moderno em Arquitetura, identificada a perda de qualidade dos espaços públicos da cidade nele implicada; b) a ideia de que era preciso refletir sobre a Arquitetura como disciplina, ou seja, nos nossos próprios termos, por meio de categorias analíticas que desvelassem as implicações da configuração dos lugares para nosso corpo e nossa mente, sem o que não teríamos as ferramentas adequadas para melhor projetar.
Nesse quadro surge o trabalho pioneiro de Philippe Panerai e seus colegas, Jean Castex e Jean-Charles Depaule, Formes urbaines: de l'îlot à la barre, de 1977. Há uma interessante “conjunção de astros”: Richard Sennett, no campo da Sociologia, publica no mesmo ano o estudo clássico O declínio do homem público, referindo a modernidade a partir do séc. 18; Panerai e colegas analisam o correlato fenômeno no campo da Arquitetura, que não é simples “reflexo” do que acontecia socialmente, mas algo constitutivo mesmo daquele processo.
Eles estudaram em pormenor as etapas por que passam as transformações do tecido das cidades, intensificadas no século 19: 1) a abertura dos quarteirões e a criação de áreas públicas porém segregadas, com uma só entrada, no que antes era um interior de espaços livres privados; 2) a abertura desses quarteirões por dois lados, contudo os longos lados ainda a configurar ruas para as quais abriam as casas; 3) a progressiva especialização dos espaços axiais, um deles para a passagem de veículos, o outro para o acesso pedestrianizado para as casas; 4) finalmente, a implosão dos volumes edificados em unidades isoladas em meio a um sistema de espaços abertos amorfos: chegamos às unités d’habitación, a constituírem uma configuração na qual, como escrevem numa formulação entre precisa e espirituosa, a rua vira corredor e o corredor vira rua – menção às míticas (nunca efetivadas) “ruas” trepadas no oitavo andar desses gigantescos prédios, e às vias bidimensionais (porque não configuradas pelos prédios) por onde passam os veículos.
Poucos colocaram o dedo na ferida da erosão do espaço público – correlato sennettiano na Arquitetura – como o fizeram Philippe Panerai e colegas: o código foi revelado, o rei está nu, mas ainda há poucas crianças que o notam.
nota
NE – A série “Homenagem a Philippe Panerai” é uma iniciativa de intelectuais brasileiros que foram parceiros, orientandos e amigos, ao longo de anos e décadas, do arquiteto e urbanista francês falecido no dia 11 de maio de 2023, em Paris. Os artigos publicados são:
COMAS, Carlos Eduardo; PEREIRA, Margareth da Silva; TREVISAN, Ricardo; FICHER, Sylvia. Philippe Panerai (1940-2023). In memoriam. Resenhas Online, São Paulo, ano 22, n. 257.01, Vitruvius, maio 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/22.256/8815>.
TREVISAN, Ricardo. 3.51, 3.51, 3.51.... Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 23, n. 189.06, Vitruvius, jun. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/23.189/8861>.
FORTES, José Augusto Abreu Sá. Merci beaucoup de t’avoir comme ami! Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 23, n. 189.07, Vitruvius, jun. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/23.189/8830>.
LEITÃO, Francisco. Um legado que continuará. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 23, n. 189.08, Vitruvius, jun. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/23.189/8896>.
HOLANDA, Frederico de. Colocando o dedo na ferida da erosão do espaço público. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 23, n. 189.09, Vitruvius, jun. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/23.189/8897>.
SCHLEE, Andrey Rosenthal. Que personaje! Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 190.05, Vitruvius, jul. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.190/8898>.
COSTA, Graciete Guerra da. Memórias de Taguatinga. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 190.06, Vitruvius, jul. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.190/8899>.
FICHER, Sylvia. As cidades e suas contradições. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 190.07, Vitruvius, jul. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.190/8900>.
FERNANDES, Ana. O método de projetar (n)a cidade. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 190.08, Vitruvius, jul. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.190/8901>.
MAGALHÃES, Sérgio. O publicista da boa arquitetura, do bom urbanismo e da boa cidade. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 190.09, Vitruvius, jul. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.190/8902>.
LEME, Maria Cristina da Silva. O incansável andarilho. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 191.04, Vitruvius, ago. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.191/8903>.
MARQUES, Sérgio M. A referência linear e constante para a reflexão crítica arquitetônica. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 191.05, Vitruvius, ago. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.191/8904>.
CABRAL, Cláudia Costa. Energia, entusiasmo e inspiração. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 191.06, Vitruvius, ago. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.191/8905>.
COMAS, Carlos Eduardo. Desenhista, dançarino, cozinheiro, orientador, historiador, crítico e, enfim, arquiteto e urbanista. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 191.07, Vitruvius, ago. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.191/8906>.
ABREU, Silvio de. O estudioso da forma urbana. Philippe Panerai (1940-2023). Drops, São Paulo, ano 24, n. 191.08, Vitruvius, ago. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/24.191/8907>.
sobre o autor
Frederico de Holanda é arquiteto (UFPE, 1966) e PhD em Arquitetura (Universidade de Londres, 1997). Professor titular aposentado, pesquisador colaborador sênior e professor emérito da Universidade de Brasília, onde ministra aula desde 1972. É autor de diversos livros, dentre eles O espaço de exceção (Prêmio Anpur Tese 1998); Brasília – cidade moderna, cidade eterna (2010, Prêmio Anparq Livro) e Oscar Niemeyer: de vidro e concreto / Of glass and concrete (2011).