“Por muito tempo na história, ‘anônimo’ era uma mulher”.
Virgínia Woolf
Paulo Rezzutti resume em Mulheres do Brasil, a história não contada (1) desde os povos indígenas até 2018, ano de sua publicação, algumas figuras importantes erroneamente retratadas nos livros, majoritariamente escritos por homens, e explica: “Milhares foram esquecidas por não estarem adequadas ao papel social que lhes cabia em uma sociedade patriarcal […]. Outras são lembradas por terem se transformado em objeto. Muitas simplesmente entraram para a história como algo que não foram”.
No Brasil, o movimento feminista tem seu início apenas no século 19. Neste tempo, Nísia Augusta funda a primeira escola para meninas no Rio Grande do Sul e escreve livros considerados as primeiras obras feministas do país. O estudo para as meninas é reconhecido e liberado em 1827, visto que, anteriormente, escolas eram locais masculinos e as mulheres brancas aprendiam as tarefas do lar, enquanto as negras ainda eram escravizadas.
O ensino traz à tona a luta pelo direito ao voto, que tem sua primeira tentativa feminina em 1880 por Isabel M. Dalton, mas só é permitido em 1933, quando o Código Eleitoral do Brasil e a Justiça Eleitoral foram estabelecidas garantido direito ao voto universal, incluindo as mulheres.
Em 1962 o novo Código Civil determina o Estatuto da Mulher Casada que termina com a tutela dos maridos sobre as esposas e suas posses, significando que as mulheres teriam direito as suas heranças e a decisão de trabalhar fora, questão retratada na série brasileira da Netflix Coisa mais linda, de 2019.
A primeira Conferência Mundial da Mulher ocorre em 1975, declarado pela Organização das Nações Unidas — ONU no Ano Internacional da Mulher, a qual destacam-se as diretrizes: “Igualdade plena de gênero e a eliminação da discriminação por razões de gênero e a plena participação das mulheres no desenvolvimento”.
Em 1977 a lei do divórcio é aprovada no Brasil. Em 1985, com o retorno da democracia após a Ditadura Militar, é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher — CNDM, e as mulheres conseguem 26 cadeiras no senado e a primeira Delegacia de Defesa à Mulher especializada em casos de violência doméstica e contra a mulher. Apenas em 1988 as mulheres são reconhecidas como iguais aos homens perante a Constituição Brasileira.
O machismo permeia todos os âmbitos da realidade feminina, a liberdade e segurança sexuais não são exceção. Tão somente 2002 a falta de virgindade deixa de ser motivo para anular o casamento no Brasil e a importunação sexual torna-se crime em 2018.
Mesmo com as delegacias femininas, a violência doméstica ainda era preocupante no país. Portanto, em 2006, foi sancionada a Lei Maria da Penha, nome de uma vítima grave de violência por parte de seu marido em 1983 com dupla tentativa de feminicídio que deixou sequelas, como paraplegia. A impunidade desse caso leva a criação da lei com maiores penalidades para esse tipo de crime 23 anos depois.
Até hoje nomes femininos são raramente mencionados e estudados no setor projetual dentro das universidades, no entanto o cenário não é exclusivo no curso de arquitetura. No livro Histórias das mulheres e histórias feministas (2) é feita a análise de onze livros utilizados para cursos das artes visuais no Brasil, e foi percebido que mais de 90% dos artistas citados (2.222) são homens, enquanto somente 215 são mulheres, sendo que seis delas não contém informação alguma.
Na década de 1970, na qual o Dia Internacional da Mulher foi estabelecido, o livro “The Architect. Chapters in the History of the Profession” (3) é publicado com um capítulo destinado somente à história das mulheres na arquitetura.
Mesmo que as mulheres sejam maioria em formandas (65% dos 212 mil arquitetos), ainda são minoria em premiações e cargos de alto escalão no meio. O Prêmio Pritzker, principal prêmio mundial de arquitetura, somente laureou uma mulher, Zaha Hadid, em 2004, 26 anos após o início das premiações. Um fator que gerou polêmica no ano de 1991, foi o prêmio destinado somente para Robert Venturi, excluindo sua sócia e esposa no projeto vencedor, Denise Scott Brown, que se recusou a comparecer à solenidade.
Zaha também disse enfrentar dificuldades para se inserir no meio, mesmo tendo se formado em 1977 e conseguido bastante visibilidade: “Estou isolada desse mundo, eles vão pescar, jogar golfe, saem para tomar um drinque. E como mulher, você é excluída dessa formação de relacionamento. É uma grande diferença” (4).
Os primeiros contatos encontrados das mulheres na arquitetura, por volta de 1800, foram escritas sobre espaços domésticos, pois eram os ambientes mais frequentados por elas, como em Casa da mulher americana das irmãs Beecher de 1869 (5). No livro é feita uma análise em torno da cozinha, seu design, armários, prateleiras e outros mobiliários com a finalidade de aumentar a praticidade, prevendo um espaço sem funcionários por se passar próximo ao abolicionismo nos Estados Unidos.
Marion Griffin foi uma das primeiras arquitetas graduadas no mundo, em 1894, conhecida por ter trabalhado com Frank Lloyd Wright onde teve influência em muitos dos projetos. Em 1911 se casou, abriu um escritório com o esposo e juntos fizeram diversos projetos relevantes.
O tema da arquitetura se prolifera entre as autoras que começam a se aprofundar nas questões construtivas. Na prática as arquitetas ainda não recebiam visibilidade e nem o título, no entanto, algumas desenhistas ou proprietárias de famílias mais abastadas se aventuravam a projetar alguns espaços em suas casas, como foi o caso de Maria Manoela Marques de Souza, desenhista pelo Colégio Sião, equivalente à faculdade de arquitetura, no Rio de Janeiro em 1870.
A primeira arquiteta formada no Brasil é desta mesma década. No artigo “Arinda Cruz Sobral, a primeira arquiteta brasileira” de Camila Belarmino (6) e “Mulheres arquitetas pioneiras da América Latina” de Fabian Dejtiar (7), é pesquisado sobre Arinda da Cruz Sobral, que finalizou o curso de arquitetura na Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro em 1914, a única escola a oferecer esse curso no país até a década de 1930. Responsável pelo projeto da Capela São Silvestre, de 1918, no Rio de Janeiro. No entanto o nome da autora foi citado somente em 1912, e depois disso, nem mesmo nos arquivos históricos até a redescoberta da autora em 2021.
Lina Bo Bardi, a arquiteta ítalo-brasileira responsável pelo projeto do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand — Masp, entre outros grandes ícones da arquitetura brasileira, teve edificações inauguradas até 1994, dois anos após a sua morte. Com ela, que durante sua trajetória precisou desbravar cenários ainda muito masculinos, já nos aproximamos dos anos 2000 onde a arquitetura feita por mulheres começa a tornar-se mais habitual.
notas
1
REZZUTTI, Paulo. Mulheres do Brasil, a história não contada. São Paulo, Leya, 2019.
2
LEME, Mariana; PEDROSA, Adriano; RJEILLE, Isabella; BRYAN-WILSON, Julia; SCHWARCZ, Lilia Moritz (org.). Histórias das mulheres, histórias feministas. São Paulo, Masp, 2019.
3
Em tradução livre, “O arquiteto. capítulos sobre a história da profissão”. KOSTOF, Spiro. The Architect. Chapters in the History of the Profession. Oxford, Oxford University Press, 1986.
4
MCKENZIE, Sheena. Zaha Hadid: “Would they still call me a diva if I was a man?”. CNN, Atlanta, 21 ago. 2014 <https://bit.ly/3PIjD09>.
5
BEECHER-STOWE, Catherine E; BEECHER, Harriet [1869]. The American Woman's Home. Outlook Verlag, 2019.
6
Historiadora recupera trajetória de Arinda da Cruz Sobral, a primeira mulher arquiteta do Brasil – e talvez da América Latina. Universidade de São Paulo. Portal USP São Carlos, São Carlos, 27 jun. 2022 <https://bit.ly/3XEgEYz>.
7
DEJTIAR, Fabian. Mulheres arquitetas pioneiras da América Latina. ArchDaily Brasil, São Paulo, 29 out. 2022 <https://bit.ly/3pwXwPF>.
sobre a autora
Clarissa Mello Mattos Terra é arquiteta (PUC RS), pós-graduanda em Design de Interiores (PUC RS) e em Arquitetura de Luxo (URM) e mestranda em arquitetura e Urbanismo (FAU Mackenzie).