As cidades grandes do Brasil, em geral, são caras, inseguras, excludentes e insustentáveis. A situação revela a falência do estado na implementação de políticas urbanas em benefício do interesse geral.
Os conflitos históricos manifestam-se cruamente na organização do território e na configuração das paisagens urbanas. O problema crônico da desigualdade, resultado da persistência subliminar da cultura escravagista, se espelha na precariedade e ausência de condições urbanísticas da maioria pobre da população nas periferias e favelas, e nas estruturas defensivas da denominada cidade formal, onde habita uma classe média forçada a pagar à iniciativa privada os serviços que o estado se vê impossibilitado de prestar.
A sociedade paga caro por cidades divididas: saúde, dignidade e oportunidades perdidas são o custo para a maioria que habita as periferias urbanas; segurança, lazer e serviços (que a iniciativa privada arrebata do estado ausente) definem o ônus da classe média, forçada a morar em condomínios e edifícios autossuficientes.
A arquitetura excludente, que separa o habitar privado do espaço público, expande a sensação de insegurança e revela a falência do estado municipal no controle de condições elementares de gestão urbana. Nesse contexto, o território da cidade vira campo de negócios imobiliários e de serviços urbanos, que supera a aptidão do estado para resolver as demandas sociais dos cidadãos em geral e das pessoas mais carentes em especial.
Arquitetura imobiliária divorciada do espaço público expõe a carência de urbanidade nas cidades, assim como ocupações improvisadas e precárias de territórios periféricos (alguns sem condições de urbanização), expostas ao crime organizado, milícias e sectarismos religiosos. Elas comprometem a segurança das pessoas e a preservação das qualidades ambientais e paisagísticas, e revelam o constante desafio de gestão das cidades contemporâneas no Brasil.
Mobilidade é outra provocação política e de gestão, que revela a insustentabilidade do modelo. A predominância do sistema motorizado individual discrimina a maioria pobre dependente de transporte público de duvidosa qualidade (resultante da estrutura urbana desnecessariamente extensa), colapsa o sistema viário, promove a poluição ambiental, compromete as qualidades urbanas, suscita estresse e irracionalidade na vivência cotidiana e gera ônus altíssimo para a classe média, derivado da compra e manutenção de automóveis e da construção de estacionamentos. A urbanidade fica extremamente comprometida ao destinar espaços importantes da arquitetura (os de contato entre os domínios público e privado) à construção de garagens, descartando a vivência social sob complacência das leis de uso e ocupação do solo.
Áreas centrais consolidadas urbanisticamente, porém subutilizadas ou semiabandonadas, são outro fenômeno extremamente oneroso resultante do predomínio do capital imobiliário na expansão da cidade, ávido por produzir novas ofertas de mercado desconsiderando a reutilização e adequação de edifícios existentes. Essas características expansivas do fenômeno urbano, além do custo social, têm impacto no permanente deterioro ambiental do território e na persistência da desigualdade e da injustiça.
Cidades inseguras, excludentes, extensas e dependentes do sistema motorizado individual são excelentes oportunidades de negócios para a inciativa privada, onerosas para os cidadãos e inacessíveis para a gestão pública.
A exaustão do modelo provoca reações na procura de uma cidade inclusiva, solidária e integrada social e urbanisticamente. Os argumentos do debate urbano contemporâneo, tanto conservadores quanto progressistas, desvendam a luta pelo território, a reivindicação do direito à cidade dos grupos menos favorecidos, o desequilíbrio social por questões de raça e cor (pretos e pardos são maioria entre as pessoas mais carentes, habitantes das periferias), e a resistência das classes no poder em defesa dos interesses resultantes da comercialização do solo urbano.
Processos de transformação urbana com benefício social só tem oportunidades de desenvolvimento em contextos democráticos, com instituições sólidas e sistemas jurídicos consistentes, que possam garantir segurança, previsibilidade e confiabilidade na gestão das políticas públicas.
As mudanças acontecidas na conjuntura política do Brasil com as revoltas de 2013, o golpe parlamentar de 2016 (com a cumplicidade da mídia corporativa), as inconsistências do sistema jurídico e a ascensão do fascismo, provocaram a retração das políticas urbanas. O desmonte institucional, com a eliminação de importantes ministérios como o das Cidades, cortou os relacionamentos entre órgãos federais e municipais no financiamento de políticas urbanas de benefício social. A política de armamentismo implementada pelo governo anterior piorou as questões de segurança pública (que o próprio modelo de cidade vinha fortalecendo), promovendo o “cada um por sim” e pretendendo delegar atribuições do estado nas mãos de quem tem condições de comprar, manter e manipular armas de fogo.
A questão estimula a reflexão acerca dos destinos das políticas públicas com equilíbrio e solidariedade, desafios que o Ministério das Cidades deve assumir em colaboração com governos municipais para diminuir o custo Brasil. Ações desde as periferias ao centro mereceriam destaque em cidades onde a desigualdade torna-se desmedida, destacando as prioridades para as camadas mais carentes e necessitadas de intervenções públicas. Essas questões permeiam o debate político e oferecem oportunidades para o desenvolvimento de arquitetura e urbanismo, que possuem um papel preponderante nesses processos, a disposição do poder público para realizar as transformações que o país merece.
sobre o autor
Roberto Ghione, Arquiteto, Especializado em Crítica Arquitetônica, Preservação do Patrimônio e Planejamento Urbano. Presidente do IAB PE 2017/19. Titular do escritório Vera Pires Roberto Ghione Arquitetos Associados.