José Paulo Mateus: Tratando-se os clientes de uma pessoa formada em psicologia e de um artista plástico, quais as particularidades desse processo?
João Luis Carrilho da Graça: Este era um caso particular. Neste Projeto tinha-se o objetivo de fazer, em certos aspectos, quase uma casa ideal, porque se tem obras de arte e mobiliário fabulosas, um espaço que por exemplo eu não tenho na minha casa, e portanto tem-se à partida uma série de condições privilegiadas. Um dos aspectos mais importantes para além da relação com o exterior era prepará-la para servir de pano de fundo para essa coleção de obras de arte. E houve conversas muito interessantes, por exemplo, sobre a estante da sala porque o Julião acaba por ser quase mais radical do que eu relativamente à arquitetura de modo que por vezes eu até ficava surpreendido com coisas que ele dizia.
JPM: Em que sentido?
JLCG: A estante não devia ter muita presença e por isso as prateleiras eram só tábuas horizontais e verticais. Quando foi colocada no sítio o Julião disse "então o fundo não é de madeira?" E eu disse "não, é a parede. É a coisa mais simples que se pode fazer" e ele disse "mas eu gostava ainda mais simples. Se o fundo for de madeira temos uma só matéria que constrói tudo“. E eu dei-lhe razão. Uma vez fez-me subir a escada de uma ponta à outra e chamou-me a atenção a dois pormenores incongruentes com a lógica de desenho da guarda. Eu achei espantoso porque acho que sou muito picuinhas, que levo tudo até às últimas conseqüências não só em termos de pormenor e conceito e depois de realização e ali encontrei um cliente extraordinariamente rigoroso que não só aceitava entrar no jogo mas que tinha uma exigência de coerência ainda maior que a minha.
JPM: Havia então uma disponibilidade mental dos donos da casa e uma curiosidade acrescidas resultante da sua formação?
JLCG: Exato. Eu acho que nós não nos devemos deixar levar pelas aparências, coisas que são relativamente superficiais. Ainda ontem vi uma exposição fabulosa da Helena Almeida (Pés no Chão, Cabeça no Céu), e tive quase uma espécie de choque porque me lembrava intensamente os bailados da Pina Baush. Recentemente vi uma reportagem no canal Arte com um dos bailarinos da Pina Baush, em que ele dava uma série de explicações sobre o trabalho. Tive a sensação fortíssima de estar quase na mesma área artística ou estética. O que eu acho ali muito curioso é que se reparar de uma maneira direta em muitas das peças, eles estão vestidos de uma maneira quase formal ou comum mas subvertem completamente essa primeira leitura através da intensidade daquilo que se está a passar e que nos querem transmitir. É assim um bocado o que eu sinto por aquela casa.
JPM: Como se relaciona uma coisa com a outra?
JLCG: Aquela arquitetura do Estado Novo, perfeitamente codificada com um conjunto de aspectos lingüísticos que à primeira vista nos custaria aceitar, mas que depois podem ser deslocados para um espaço de significação completamente diferente através de pequenas intervenções e da introdução de uma espécie de alma interior da casa. Foi o que nós tentamos fazer. E eu acho que é nesta área que a casa se pode construir respondendo a padrões que são ao mesmo tempo de conforto e que têm um sentido base clássico, porque são coisas aceites comumente, mas depois podem ser subvertidas através de outros sinais que foram fazendo de certa maneira cintilar aquele espaço.
Este tipo de projetos tem sempre dificuldades impostas pelas pré-existências. Em qualquer intervenção que se faça tem-se sempre algumas existências com as quais se tem de dialogar, mas quando se passa para o interior da casa há uma espécie de luta corpo-a-corpo. Lembro-me que quando fui lá numa das primeiras vezes, eles estavam a instalar-se na casa depois de terem feito algumas obras de conservação. Quando começaram a colocar o mobiliário e quadros na parede, eu francamente tinha a sensação que havia ali um certo desacerto entre o peso excessivo do ponto de vista lingüístico da pré-existência e uma certa contradição com um conteúdo que não tinha ainda força de contraposição suficiente. Esta intervenção que nós fizemos já cria uma espécie de equilíbrio ideal muito mais assumido e claro, por ter subvertido uma série de sinais existentes, por ter apagado uns e revelado outros, por ter introduzido uma outra teoria, uma outra alma. Quase que se poderia imaginar como um desenho em que permanentemente se apagava e escrevinhava, que servia como guia do princípio ao fim, com diversas emendas e sobreposições. Mas parece-me nitidamente que se criou o espaço para que a presença das obras de arte, da relação interior-exterior e da vida funcionem de uma maneira bastante equilibrada e interessante.