José Mateus: Visitou outros estádios de futebol?
Eduardo Souto de Moura: Comecei a visitar estádios por razões técnicas: em Sevilha vi dois, em Itália vi o estádio que me parecia mais bonito, o de Bari, do Renzo Piano, que tem fortes influências no de Braga. Depois, acabei naquele que se diz ser o “último grito”, o de França, onde eu e os meus colaboradores fomos quatro vezes. Claro que também estudei futebol e comecei a ir ao futebol com cronômetros a medir o tempo de evacuação dos estádios, pois tem de se poder sair em sete minutos. Aproveitava os Boavista-Benfica que eram aqui ao lado, o Porto-Barcelona... Agora sou um fervoroso adepto de futebol. É de fato um espetáculo lindíssimo ao qual nunca tinha ligado.
JM: Muita gente deve ter a idéia de que Souto de Moura faz uns desenhos extraordinários e depois sai um estádio daqueles. Sabemos que as coisas não são bem assim: trabalha-se muito e os resultados vão evoluindo, aos poucos, e com os esforços de uma equipa pluridisciplinar extensa…
ESM: Eu sou, ou era, um arquiteto de escalas pequenas, fazia muitos projetos de casas, e depois apareceu esta oportunidade. As pessoas agora elogiam e pensam que tudo se processou exatamente como eu queria. Não é verdade. É um bocado como os cirurgiões que estão aflitos agarrados ao coração a ver se um tipo não vai à vida, e eu estava aflito com uma maquete e muitas vezes pensava 'isto não cabe, é pequeno, a que escala está?'. Isto não é humildade, não se controlam facilmente aquelas escalas. Braga foi uma oportunidade única, agarrei-a com os dentes todos. Aquele não foi apenas “mais um projeto”. Eu mudei a minha maneira de viver, quero dizer, os tempos eram apertados, a informação faltava... há pessoas que vão para retiros, outras preferem momentos de reflexão junto aos monges na Índia ou no Tibete. Eu fui para o estádio do Braga. Fiz um gabinete só de estrangeiros — não é que eu tenha algo contra os portugueses, mas era preciso trabalhar dia e noite e isso é mais fácil para um japonês que vem trabalhar para o Porto. Havia uma grande intensidade, as pessoas só viviam para aquele projeto. Começamos a viajar e era informação, cinema, televisão, Suíça, UEFA, FIFA, regulamentos, segurança, etc. Uma simples guarda era um problema, pois tinha que suportar as cargas tremendas de uma multidão em tumulto, e tinha de ser calculada pelos engenheiros. Depois, nas viagens, íamos confirmar algumas dessas soluções, 'deixa lá ver como em Paris resolveram essa guarda, ou em Bari…'. E o projeto foi alterado inúmeras vezes durante a obra. Trabalhou-se noite e dia, havia um carro a fazer permanentemente a ligação Braga-Porto, e um grupo de arquitetos que saía do estádio às nove, dez da noite, desenhava durante a noite, e às nove da manhã entrava outra equipa para dar a informação à obra. Mais do que arquitetura, isto é um certo heroísmo.
JM: A minha percepção do estádio é que, sendo desenhado com o sítio, não constrói com ele uma idéia de harmonia...
ESM: Não é nada amável, ele compete com o sítio, mas isso é um tema que eu gosto imenso: a expressão 'natureza e artefato' é uma frase bastante batida mas vêem-se as energias naturais e de como elas se contrapõem à arquitetura, quer em termos de paisagem e silhuetas quer em termos físicos. Mal foi aprovado que o estádio iria ser feito como eu sugeria, fui a Epidauros, na Grécia, porque o tema era aquele. Eu não fazia a mínima idéia do que era a relação com a paisagem, como se faziam os cenários de filtragem... Não há arquitetura aberta, mas há filtros. Há os bosques, que para além de garantirem a acústica criavam um primeiro limite e davam um ambiente, e há a paisagem com a silhueta ao fundo. Coisas que os gregos faziam muito bem. E fui a Corinto, ver o canal. Foi nesses sítios e nas visitas que fiz aos estádios que fui encontrando as sugestões para Braga.
JM: Fala-se do Braga como 'o mais arrojado dos Estádios'. Que arrojo?
ESM: Há vários tipos de arrojo: o do dono da obra, que teve de arranjar o dinheiro para o estádio existir, e mesmo antes disso, por exemplo, tiramos um milhão e quinhentos mil metros cúbicos de pedra. Depois, colocou-se a questão da pala, que em princípio era para ser contínua, e aí a referência era a pala do Pavilhão de Portugal do Siza, mas enquanto a do Siza tem 60 metros, a do estádio tem 220. Existe ousadia por parte do arquiteto por dizer: 'é assim'. Para os engenheiros era 'um problema complicado porque nunca se fez nada igual, seria a maior pala do mundo'.
JM: Se um estádio é um investimento tão grande faz de fato sentido ser pretexto para uma obra significativa...
ESM: Não há ninguém que defenda mais a sua obra que os arquitetos, mesmo entrando em grandes contradições. Reparo que eu, os meus amigos e pessoas com quem eu convivo defendem as obras como os filhos, até ao ridículo quase. É raríssimo um arquiteto abandonar uma obra, só se for chicoteado, porque ele agüenta as humilhações, agüenta que não lhe paguem, agüenta que lhe pintem aquilo de roxo e ele depois tem a esperança de lá ir a um domingo de manhã e pintar da cor que quer. Nas minhas viagens eu percebi que um estádio é também um lugar de atração para as famílias. Quando fui ao Estádio de França vi que as pessoas reservam espaços, vendem livros, etc. Um estádio é uma empresa para dar lucro: paga-se bilhete, come-se lá, vai-se às lojas, e todas as semanas pode haver um evento qualquer, como corridas de tratores, de motas, exposições de casas pré-fabricadas, etc. Portanto, se um estádio for bem gerido, esta idéia de que as vedetes ganham imenso dinheiro mas os clubes estão falidos não tem de ser assim.