Denise Mendonça Teixeira: Qual sua formação profissional?
Flávio Villaça: Fiz mestrado nos EUA e o doutorado no Departamento de Geografia da FFLCH em 1978, pois não havia doutorado na FAU. Pensei em fazer doutorado em Porto Alegre, na UFRGS, mas o prof. Lauro Birkholz me desencorajou alegando que eu teria que revalidar esse título na USP, que não reconhece os títulos das universidades federais. Então surgiu a idéia de fazer na Geografia. Até hoje eu tenho muito contato com o pessoal desse Departamento, aonde participei de duas bancas para professor titular.
DMT: O que o senhor tratou na sua tese?
FV: Foi a semente do que está no livro Espaço intra-urbano no Brasil: a organização interna de quatro metrópoles, Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre. Depois eu desenvolvi esse tema, com mais fundamentação teórica, atualizei e incluí mais duas metrópoles – Recife e Salvador – e assim escrevi o livro.
DMT: Ainda ensina na FAU?
FV: Dou apenas aulas esporádicas. Tenho várias atividades acadêmicas que já me consomem bastante tempo: orientações de doutorado, palestras, congressos, escrever artigos, escrever livros, participar de bancas, de júris etc. Além disso, faço pesquisa. Acabo de terminar, junto com a Profa. Silvana Zioni, da Arquitetura do Mackenzie, uma pesquisa financiada pela FAPESP sobre Os transportes sobre trilhos na Região Metropolitana de São Paulo. Para mim isso basta.
DMT: O que pensa da participação no Plano Diretor de São Paulo? Teria sido insuficiente por que os assuntos não interessavam às pessoas de baixa renda, por que tinham precária formação escolar?
FV: A posição que ainda predomina é a idéia da tecnocracia, de que o plano diretor é um tema técnico, então ele é um assunto dos técnicos, dos que entendem do assunto. Nessa arapuca até o Paul Singer caiu nos anos 90. Isso é o que eu tento desmistificar no meu livro As ilusões do plano diretor. A minha tese é que a maioria das camadas populares não participa dos debates, não por uma questão de conhecimento técnico, mas sim porque o assunto não lhes interessa. Caso contrário, eles participariam. Portanto não é o problema de competência – outro ranço que está ligado à esta ideologia da tecnocracia. O discurso do plano diretor tradicional diz, que ele representa os interesses e a vontade da sociedade, mas a prática mostra que isso é falso, que a maioria não vê seus problemas e suas soluções no plano. Se ele realmente abordasse os temas populares, a maioria da massa, se interessaria por ele. Se não se interessa é por que o plano diretor não diz respeito a esses problemas.
DMT: A escola não seria a melhor forma do plano chegar às comunidades?
FV: Existem muitos canais, mas as ONGs e organizações populares, por já reunirem as lideranças, talvez sejam mais eficiente que as escolas. Não é preciso usar as crianças como um canal para se chegar aos pais, as lideranças é que devem ser influenciadas. Por isso faço sempre um apelo para que meu livro As ilusões do plano diretor seja divulgado entre essas organizações.
DMT: Se não temos uma cultura de participação, isso não teria que ser construído?
FV: Mas é claro que temos essa cultura, como não? Veja o movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, é uma organização fabulosa, fantástica, que tem hoje repercussão internacional, ou os Sem Teto e as ONGs de saúde de transportes, esses são muito atuantes.
DMT: Então, são várias frentes para que a participação aconteça?
FV: Toda essa campanha que o Ministério das Cidades está fazendo para promover os planos diretores é um esforço gigantesco que se alastra. Existe o maior empenho em divulgar o plano pelo Brasil inteiro, fazendo conferências municipais, depois estaduais e federal. Eles deveriam ensinar os técnicos a fazer plano diretor de baixo para cima, coisa que eles não sabem. Deveriam encorajar as ONGS e organizações populares a tomarem de assalto o plano diretor, e o. Seria preciso ensinar as lideranças populares a usar os técnicos, e colocá-los ao seu serviço e sob suas ordens, e não o contrário. Por outro lado, os técnicos não estão acostumados a isso e a capacitação de que precisam é a de saber seguir e viabilizar as necessidades da maioria, portanto ouvir a maioria. Grande parte dessas conferências os ditos “cursos de capacitação” não mostram isso e ainda afirmam que é o diagnóstico técnico que irá dizer quais os problemas das massas populares e instruí-la. Por outro lado, as elites também não tomam conhecimento dessas conferências, a crença difundida é que, por ser um problema técnico, as elites não necessitam de “capacitação”, pois estas seriam competentes.
DMT: O senhor assistiu a muitas reuniões. Participava delas?
FV: Fui a várias reuniões em São Paulo como observador, porém não participei ativamente nem naquelas da minha sub-prefeitura (Pinheiros). Foi da freqüência à essas reuniões nasceu a idéia do livro As ilusões do plano diretor.
DMT: Quem participava das reuniões tinha envolvimento com o assunto?
FV: Nas regiões ricas da cidade – as sub-prefeituras do Quadrante Sudoeste – o envolvimento foi grande. Já na periferia, não. A quase totalidade dos participantes nessas áreas eram líderes comunitários, representantes de alguma organização sempre grande, de muitos bairros ou de uma região, enquanto na parte rica a maioria estava ali para defender interesses pontuais. Existia inclusive organizações de moradores de uma única rua, muito atuantes. Tinha uma organização que reunia os proprietários/moradores de apenas quatro lotes, situados numa rua de acesso à USP. Os interesses eram quase sempre de zoneamento, na maioria dos casos Z1 e na maioria dos casos áreas pequenas, grupos restritos, assuntos pontuais mesmo. Porém se uma pessoa da periferia trazia um assunto pontual, aí o técnico dizia: “mas plano diretor não é para resolver assuntos pontuais e pessoais é para resolver questões gerais da cidade”! No entanto, na parte rica da cidade, só se queria saber da qualidade de vida no bairro deles, nas suas ruas e casas. Foi o caso paradigmático da subprefeita de Pinheiros. Numa das primeiras reuniões, no auditório do clube Pinheiros, quando a sub-prefeita percebeu que todo mundo só falava da sua rua, do seu bairro e da sua casa, levantou-se e bradou enérgica: “Não quero saber de ninguém aqui falando do “meu” bairro, do “meu” pedaço, da “minha” rua”! Não deu outra, só falaram desses assuntos. Ela, evidentemente, teve que desistir de sua proposta.
DMT: Outra forma de fazer essa participação, então, seria via ONGs?
FV: Em grande parte sim. Seria começar de baixo para cima e não fazer primeiro o plano – mesmo uma proposta ou esboço de plano – para só depois chamar a população para opinar. E sim fazer com que a população paute o plano diretor, que digam os problemas que devem constar nele. A população – e suas lideranças – estão cansadas de conhecer seus problemas. Os problemas da cidade não devem ser fruto de diagnósticos técnicos, eles devem servir para dimensionar e quantificar, daí estudar soluções. A população deve, então, passar como “lição de casa“ para os técnicos, a apresentação das propostas de solução. Depois dessas serem elaboradas, volta-se se reunir para debatê-las.
DMT: Portanto, os responsáveis pela elaboração do plano até acreditam que eles devam ser elaborados a partir das informações da população, mas na prática isso não chega a acontecer?
FV: Não estou tão certo disso. Aí entramos num campo totalmente novo, aonde é difícil ditar regras, pois é necessário o diálogo com a experiência, é preciso experimentar. Mas para mim não consta que as bases tenham sido ouvidas antes de se iniciar um plano diretor.