Roberto Segre: Você estudou arquitetura na década convulsa dos anos cinqüenta. Como se enfocava o tema do urbanismo na Faculdade de Havana? Quais eram os professores? Existia algum vínculo entre a teoria que se oferecia e a pratica que se desenvolvia na cidade?
Mario Coyula: Iniciei os estudos de Arquitetura em 1952, pouco depois do golpe de estado de Batista, ao que os estudantes da Universidade se opuseram desde o primeiro dia. A verdadeira vanguarda política na Escola de Arquitetura – certamente, não afiliada a partidos tradicionais de nenhum tipo – coincidia em general com a vanguarda arquitetônica e cultural. Foi uma grande diferença com o que sucedeu na União Soviética, onde a direção política era culturalmente reacionária. Quem sabe essa tenha sido uma das causas do penoso fracasso daquele experimento, que durou o mesmo que a vida de um ser humano, apenas uma lápida no cemitério da História: 1917-1989.
No plano de estudos vigente naquela época – seis anos de duração – havia somente um semestre dedicado ao Urbanismo, apropriadamente chamado Arquitetura de Cidades. Seu enfoque e até seu nome levavam o perfume Beaux Arts, combinando alguns princípios funcionais com a retórica compositiva que Andrés Duany, León Krier e o Príncipe Carlos tratariam de reivindicar quarenta anos depois. Oferecia a assinatura o velho professor Pedro Martínez Inclán, que entre 1919 e 1925 havia proposto um plano diretor para Havana, queixando-se sempre de que o urbanista e paisagista francês Jean-Claude Nicolas Forestier havia se apropriado de algumas de suas idéias. Olhando para trás aos crimes feitos em nome do Movimento Moderno, que nos encheram de conjuntos anônimos para o horror dos carteiros, sinto falta daquele urbanismo que então desdenhamos por pomposo e antiquado, mas que era definitivamente muito mais cívico.
Não recordo de projetos nas oficinas de desenho que enfocassem a escala urbana mais além de um clube de iatismo, mas me vêm à memória que em 1955 os estudantes Jorge Del Río, Serafín Leal, Isaac Sklar, José de la Torre e Mario Lens ganharam o Primeiro Prêmio no concurso internacional para estudantes de Arquitetura na III Bienal de Arte Moderna de São Paulo. O projeto foi um conjunto para as férias de 3 mil operários com suas famílias em Pasacaballos, Cienfuegos. Ninguém pensava então na contaminação dessa formosa baía. Alguns estudantes com maior preocupação social ou mais curiosidade por uma escala desconhecida, como Eduardo Granados, Osmany Cienfuegos, Reinaldo Estévez, Daniel Taboada, Hugo D’Acosta-Calheiros, Henry Gutiérrez e Emilio Fernández terminaram nesse mesmo ano seu Trabalho de Graduação, dirigido por Alberto Prieto, com um estudo para o planejamento do desenvolvimento urbano do povoado de pescadores Surgidero de Batabanó, na costa sul da província de Havana, perenemente afligido por inundações.
A carreira naquele tempo estava completamente orientada para o desenho e construção de edifícios, para não dizer casas; mas um grupo de estudantes e o professor Pedro Cañas Abril haviam posto em discussão o tema do planejamento urbano, muito associado a outro debate em moda naqueles tempos sobre a função social do arquiteto. A excelente revista Espacio, da Associação de Estudantes de Arquitetura, teve um papel muito importante nessa tomada de consciência.
O súbito despertar ao planejamento deu origem a uma situação agradável: os estudantes de Arquitetura tomaram a dianteira aos de Engenharia, e no pequeno porém moderno local de nossa Associação, adjacente ao velho edifício que compartiam arquitetos e engenheiros, colocaram as letras AEAP – Associação de Estudantes de Arquitetura e Planejamento. Reagindo tardiamente, os estudantes de Engenharia protestaram contra o que consideravam o monopólio do Planejamento; e em várias ocasiões arrancaram o "P", que depois era resgatado com uma ou outra trombada pelos da Arquitetura.
RS: Ao se elaborar o Plano Diretor pela equipe dirigida por Sert com a participação de profissionais cubanos, teve alguma repercussão entre os arquitetos e na Faculdade? Discutiram-se suas propostas entre alunos e professores?
MC: Esse plano foi encomendado pelo ditador Fulgencio Batista através da Junta Nacional de Planejamento que seu governo havia criado em 1955 para ordenar o forte desenvolvimento turístico previsto em Havana, Varadero, Cojímar e na Ilha de Pinos, muito ligado à entrada de capital mafioso pelos Estados Unidos. Meyer Lansky e Santos Trafficante chegaram a investir aqui com os hotéis Habana Riviera e Capri, respectivamente, como parte de uma estratégia para converter Havana na Las Vegas do Caribe. Trinta anos antes outro ditador, Gerardo Machado, havia solicitado também outro plano diretor, encomendado então a Forestier, para converter-la na Niza do Caribe. Em pouco tempo o modelo a seguir havia passado da Europa aos Estados Unidos.
Certamente, o urbanista Mario González conta uma anedota pouco conhecida: o projeto para o hotel Riviera havia sido inicialmente encomendado a Philip Johnson. Para apresentar sua proposta a Lansky, Johnson apareceu todo vestido de preto, levando na mão uma pequena mas perfeita maquete em branco e preto do edifício. Fez uma explicação curta, enfatizando o cuidado que havia tido com as proporções. Lansky gostou do projeto, mas pediu que lhe adicionasse vários andares mais para fazê-lo mais rentável. Johnson se pôs de pé e exclamou: Gentlemen, please, don’t be vulgar! Think about proportions! . Em seguida recolheu sua maquete e abandonou a sala. No final o projeto que se construiu foi feito por outro Johnson, associado com Polevitzky, conhecido arquiteto de Miami. Penso às vezes em qual teria sido a reação de Philip Johnson quarenta anos depois (quem sabe não tão altivo).
A JNP estava dirigida por um bom arquiteto, Nicolás Arroyo, ministro de Obras Públicas do governo golpista; e nela trabalharam profissionais cubanos modernos de prestígio reconhecido como Nicolás Quintana – quem agora, desde Miami (2004) – se propõe a ingente tarefa de prognosticar o futuro de uma Havana democrática. Também participavam dela os arquitetos Jorge Mantilla, Eduardo Montoulieu e (lamentavelmente por seu prestígio) Mario Romañach. Este último foi o mais criativo e experimental da geração do pós-guerra, que deu figuras do tamanho de Max Borges, Antonio Quintana e Frank Martínez, entre muitos outros.
Resulta interessante comparar os conceitos e soluções formais adotados no Plano Sert (1955-58) e nos da Praça Cívica, inaugurada em 1953. Como era se de esperar, Sert estava completamente afiliado ao urbanismo do Movimento Moderno e dos CIAMs. Seu projeto sobrepunha as Cinco Vias de Le Corbusier sobre Havana e criava centros direcionais modernos como os que seu amigo e mestre gostava. O urbanismo da Praça era convencional e de estilo fascista, mas sem o refinamento característico de qualquer desenho italiano. Batista aprendia rápido, mas também o fizeram alguns arquitetos modernos que esqueceram o compromisso social do Movimento quando surgiu nos anos 20.
A Praça Cívica foi imediatamente questionada na revista Espacio (1952-1956) editada pelos estudantes de arquitetura – entre os que participava o líder estudantil José Antonio Echeverría – e no Fórum sobre a Praça que o Colégio de Arquitetos convocou. Para maior escárnio, um estudante descobriu que o monumento ao herói nacional de Cuba José Martí (rapidamente apelidado pelo povo como "a raspadura"), era praticamente uma cópia de um reclame comercial do whisky Schenley na Feira de Nova York de 1939. Na Escola se repudiava automaticamente tudo o que se relacionava com a tirania, mas as atividades principais da JNP e do Plano Sert coincidiram precisamente com o fechamento da Universidade, e a prioridade então era a luta clandestina armada, ainda que não poucos preferiram um refúgio cômodo e seguro.
O Plano Sert foi muito criticado pela intervenção traumática que propunha sobre a trama colonial; e sobre tudo por sua famosa ilha artificial em frente ao quebra-mar tradicional, cheia de cassinos e hotéis. Também propunha uma franja de uma quadra de largura cheia de arranha-céus que correria de norte a sul como em uma vértebra pelo velho recinto amuralhado. E então criava parques no interior de cada novo quarteirão de habitações que substituía os originais. Mas sendo honestos, é preciso reconhecer que nós estudantes, não teríamos feito algo muito diferente em 1959, porque isso era o que tínhamos aprendido. Havana se salvou do Plano Sert, mas também de nós.
RS: Como se assimilaram as operações especulativas que começavam a desenvolver-se na Havana do Leste como nova área de expansão da cidade? Participaram alguns dos arquitetos locais de prestígio?
MC: Nos dois últimos anos da ditadura batistiana foi fechada a Universidade de Havana, ainda que a Universidade Católica de Santo Tomás de Villanueva, que era privada, se manteve por um tempo aberta. Os estudantes da universidade estatal se dispersaram, trabalhando como desenhistas ou projetistas em escritórios privados de arquitetos. A própria revista Espacio, que havia tido um forte protagonismo como porta-voz das preocupações profissionais e políticas dos estudantes, desapareceu em 1956. Em resumo, os alunos de Arquitetura tinham perdido sua voz. Para alguns, essa atividade em escritórios de arquitetos era paralela à luta clandestina que culminaria no assalto ao Palácio Presidencial em 13 de março de 1957. Esse dia morreu em combate José Antonio Echeverría, estudante do quarto ano de Arquitetura e presidente da Federação Estudantil Universitária, eleito em 1954. Isso ratificou o fechamento definitivo da Universidade de Havana, que já havia suspendido suas atividades quando desembarcou o iate Granma em dezembro do ano anterior.
A promulgação da Lei de Fomento de Hipotecas Asseguradas (FHA) em 1954 acelerou a construção de uma grande quantidade de repartições ou novas subdivisões em toda Havana, como Fontanar, Altahabana ou o Parcelamento Zayas. Alguns arquitetos importantes como Miguel Gastón ou Emilio del Junco (que desenhou com Mario Romañach a Repartição Santa Catalina, provavelmente o melhor daquele tempo) projetaram algumas destas urbanizações; e em seus escritórios trabalharam arquitetos recém formados, como Mario González, que depois do triunfo da Revolução teria um papel destacado no planejamento da capital.
Nicolás Quintana havia feito também nos ‘50 uma pequena obra maestra com o conjunto de habitações junto ao Hotel Internacional de Varadero, organizadas ao longo de um extenso cul-de-sac e seguindo seu particular estilo arquitetônico praieiro com paredes de pedra a vista e tetos inclinados de madeira e telhas. Já havia empregado esse repertório antes nas cabanas do hotel Kawama, também em Varadero. Mas a maioria daquelas dezenas de urbanizações foram executadas por companhias sem mais interesses que o especulativo. Recordo uma delas, onde só trabalhei três dias, que desenhava as plantas das habitações a 1:50 e colocava o mobiliário a 1:80…
Tudo referente à Havana do Leste foi um dos maiores negócios sujos de Batista. Conhecendo (obviamente) a próxima construção do Túnel da Bahia e a Via Monumental, inaugurados no final de 1958, ele e seus sócios se haviam beneficiado com a enorme mais-valia que essas inversões produziriam em terrenos até então praticamente incomunicáveis. Existe um filme rodado recentemente aqui pelo diretor espanhol formado em Cuba, Mariano Barroso, que trata sobre isso: Formigas na Boca, baseada num thriller do irmão do diretor, Miguel Barroso.
O Plano Sert propunha um novo desenvolvimento ao leste de Havana, incluindo um centro direcional político-administrativo com um Palácio Presidencial que seria o maior do mundo – e possivelmente o melhor resguardado –, depois do susto que passou Batista em 1957. Também convidaram outro arquiteto de fama mundial, Franco Albini – que deixou um testemunho na revista Espacio –, projetista das unidades residenciais entre o Castelo do Morro e Cojímar. Mas devido ao fechamento da Universidade e à dispersão (e em ocasiões, perseguição) dos estudantes, a maioria veio a conhecer essas propostas depois do triunfo da Revolução.
Apoiando-se nessa custosa infra-estrutura paga pelo Estado – Túnel da Bahia, Via Monumental – foram feitas ao leste de Havana as urbanizações de Alamar, Via Túnel, Colinas de Villarreal e Belvedere, para só mencionar as mais próximas ao centro da capital. O triunfo da Revolução deixou esses planos não concluídos, e a urbanização de Alamar seria utilizada a partir de 1971 para receber um enorme e amorfo crescimento em edifícios de cinco plantas construídos pelas "Microbrigadas", onde se diluíram as poucas casinhas que ocupavam o parcelamento original.