Roberto Segre: Havana é uma cidade com uma forte personalidade urbana e arquitetônica, possuindo características específicas em cada um de seus bairros: Havana Centro é totalmente diferente de Vedado ou Miramar. No entanto, diversas construções recentes não tiveram em conta sua relação com o contexto. Você considera que se produziram prejuízos irreversíveis e que estas arbitrariedades podem seguir ocorrendo?
Mario Coyula: Naturalmente, essas intervenções prejudicaram, e não vejo uma possibilidade próxima de permitir-nos o luxo de eliminá-las. De todas maneiras, o dano está feito, ainda que talvez semear árvores que as ocultem ajudaria a reduzir seu impacto. O importante é que se detenha o prejuízo, e que se façam algumas novas intervenções boas que sirvam para elevar o nível. Agora a nova construção se faz quase toda com capital estrangeiro e para estrangeiros. Si se trata com inversionistas baratos, com uma clientela barata e contrapartidas cubanas baratas, se termina com edifícios baratos. Nisto também afeta o embargo econômico dos Estados Unidos, que reduz as opções… ainda que talvez nos salve de uma invasão incontrolável de sucata.
RS: A população, ante a carência de habitações, resolveu suas prementes necessidades por seus próprios meios, transgredindo na maioria dos casos, as normas de "decoro" urbano. Que medidas se tomaram para controlar esta situação, e como afetou este processo na qualidade estética da cidade tradicional?
MC: Ainda mais grave que o dano visível produzido por estas obras, é que ajudam a conformar uma mentalidade brutalmente egoísta, no sentido de que tudo vale si se resolve o meu problema; e falo tanto da população como dos organismos estatais. Isso reflete uma crise de valores cívicos, e talvez mais profundo ainda, éticos. O problema é que é necessário dar valor aos valores.
Quando se constrói pouco, como sucedeu desde o desaprume do campo socialista europeu, esse pouco deve ser o melhor possível. O culto à imediatez e à improvisação, o dedicar-se a cumprir metas e diretrizes – ou buscar boas explicações para não fazê-lo – tudo isso se reflexa na cidade. Mas pior que umas poucas obras novas feias, resulta a proliferação descontrolada de distorções de todo tipo na imagem urbana: cercados, barracos, quiosques, choças de guano; portais de taipa, jardins pavimentados ou inclusive cobertos; e esses “puxadinhos” que brotam como galos..
Todos os regulamentos estão escritos, mas deixaram de se impor. O que o violador realmente teme não é a uma multa, mas a que derrubem o que fez. Mas ninguém quer ser o vilão do filme. Não penso que seja possível dar-lhe marcha ré, exceto em bem poucos casos. Foi uma espécie de suicídio. Custa-me encontrar uma quadra no meu Vedado natal onde não haja ao menos uma violação importante.
RS: Você participou em diferentes projetos de intervenção em diferentes áreas da cidade, com equipes internacionais e a participação de alunos da Faculdade de Arquitetura. Qual foi o aporte positivo destes trabalhos de projeto urbano?
MC: O mais importante é abrir a mente à diversidade de enfoques, inclusive os aparentemente mais utópicos. Mas já muita gente aqui nem sequer reage. Vou referir-me somente a estes últimos anos. No CENCREM se expuseram os projetos do grupo "Manifestos", de arquitetos da vanguarda deconstrutivista internacional: Wolf Prix, Eric Owen Moss, Thom Mayne, Carme Pinos, entre outros ilustres. Eles (e eu) pensávamos que se produziria um ardente debate. Não aconteceu nada. Não existe o costume de polemizar. Eu aprendi muito em algumas sessões em 1995 quando esse grupo veio a primeira vez, ainda que as vezes as discussões eram tão sutis que chegaram a exasperar-me. Parece que eu também não estava acostumado… Na realidade, Prix apresentou uma grande maquete em branco, uma linda escultura que refletia sua busca por um vocabulário para poder intervir em uma cidade que não conhecia, como Havana; mas também disse que o que mais necessitava Havana era uma nova infra-estrutura.
Trabalhei com meu amigo Lee Cott em quatro oficinas de desenho urbano na Escola de Arquitetura de Harvard entre 2000 e 2002. Foram muito estimulantes, especialmente quando estive lá como professor visitante, no semestre da primavera de 2002, atuando sobre o Malecón havanês. Fizemos projetos sobre a Frágua Martiana, na margem direita da boca do rio Almendares, e o último foi em La Rampa. Também outro amigo, Jan Wampler, trouxe recentemente duas vezes seus alunos do MIT para trabalhar sobre La Fragua. Participei com outros grupos de Colonia, Darmstadt, Berlín, París La Villette, París Malaquais…
Com Andrés Duany foram feitos vários charrettes sobre Havana: o desenvolvimento de La Puntilla, e as regulamentações para O Vedado e para o Malecón. Raoul Pastrana, professor da Escola de La Villette de París, dirigiu várias oficinas sobre O Cerro. Xabier Eizaguirre, da ETSAB, está desenvolvendo uma pesquisa interessante sobre a morfologia urbana do Vedado. É um acadêmico muito sério, e também um grande amigo. A empatia é decisiva para trabalhar em equipe; é como a mielina, que permite as conexões entre os neurônios.
Mas não aprendo somente olhando às estrelas, mas também com meus alunos cubanos. Não é falsa modéstia, nem demagogia para ganhar-me benevolências. Segue-me surpreendendo ver alunos que em seus primeiros projetos saem com soluções brilhantes, às vezes mais criativas que as que farão depois no quinto ano. Ainda revisando projetos de alunos ruins se pode encontrar ali uma idéia que eles não viram, nem poderão desenvolver ainda que lhes assinale. É triste, no final o que aprende é único, e te pagam por isso.
RS: A criação do Grupo de Desenvolvimento Integral da Capital e a construção da gigantesca maquete de Havana (em escala 1:1000), se justificou no objetivo de criar uma maior consciência do valor da cidade, estético e cultural, tanto para a população como para os dirigentes políticos. Considera-se que esta iniciativa teve êxito? Como você participou nela?
MC: O Grupo foi criado em 1987 para guiar o que se esperava que fosse um desenvolvimento impetuoso da construção em Havana. A crise após a desaparição da União Soviética cortou esses planos, que na realidade penso que não tinham um respaldo econômico real. Era uma equipe muito pequena, muito seleta, dirigida por Gina Rey, que havia estado à frente do Instituto de Planejamento Físico de Havana por muitos anos. Estava também Mario González, que reuniu o primeiro plano diretor de Havana depois de 1959; Mayda Pérez, com uma boa experiência na habitação, e outros especialistas de distintos ramos que foram chegando depois; mas sempre poucos, para poder interagir e chegar a um consenso. Eu fui o subdiretor desde o princípio, e depois diretor de 1999 a 2001.
Desde o primeiro momento pensamos que fazia falta buscar novas formas para enfrentar as necessidades da capital, como o planejamento estratégico e o comunitário; com enfoques sustentáveis, participativos e mais descentralizados, e o emprego de tecnologias brandas. Favorecemos os intercâmbios de experiências com especialistas cubanos e estrangeiros, e os projetos de colaboração com ONG’s para suprir a falta de recursos. Promoveram-se as Oficinas de Transformação Integral do Bairro como uma forma de planejamento de baixo para cima, e se realizaram oficinas, seminários e publicações, incluindo o modesto mas sistemático boletim Carta de Havana.
Esses enfoques não eram conjunturais, somente motivados pela crise econômica; mas conceituais, de fundo. Muitos não o entenderam assim: pensavam que as propostas eram somente mecanismos de defesa para resistir um mau momento, e que tudo voltaria atrás quando a situação melhora-se. Não compreendiam a essência da sustentabilidade, que a crise era na realidade o resultado de uma vulnerabilidade congênita por não ter um modelo de desenvolvimento integralmente sustentável e viável. Compreendo que é muito difícil pensar no futuro quando se está abrumado por problemas enormes sem solução, mas alguém tem que olhar mais adiante. Os vietnamitas enviaram jovens em plena guerra para se preparar para a reconstrução do país, e estão conseguindo, apesar de que foram literalmente arrasados pela maior potência militar da história.
A maquete serviu pare ensaiar sobre ela os novos projetos. Assim puderam se deter algumas intervenções fatais, como a enorme torre de 42 andares na Praça da Revolução, que tragava o obelisco de José Martí e desbalanceava a praça. A alternativa que lhes propusemos foi decompor o programa em vários edifícios mais baixos de 12 ou 13 andares. Isso redistribuía o impacto, ajudava a melhorar a definição espacial de uma praça que sempre pareceu uma clareira, e teria permitido ir explodindo os edifícios à medida que se iam construindo. Também daria tempo para decidir se realmente o programa estava bem fundamentado. Com a desaparição do campo socialista, a planilha do ministério que promovia o edifício reduziu de 5 mil empregados a menos de 300. Outro êxito apoiado na maquete foi quando se conseguiu deter um programa para construir torres em terrenos vazios ao longo do Passeio. Meu argumento era: por que querem Passeio? Porque é uma rua muito bonita. E por que é bonita? Porque quase não existem edifícios altos. Mas é mais fácil usar a maquete para combater um projeto obviamente chocante e ruim, que para promover um bom, pequeno e contextual, que não se faz notar.
A maquete devia servir também para criar consciência nos visitantes cubanos sobre os valores de sua cidade. Mas está localizada em Miramar, um bairro pouco acessível para o havanês médio. Tratou-se de usar os lugares para seminários e conferências, oficinas com crianças de escolas próximas… Uma iniciativa que funcionou são os debates que titulei Havana que Vai Comigo. Cada primeira sexta-feira do mês levo uma personalidade convidada para falar de sua Havana, a que o marcou e acompanha. Já há mais de setenta, e saiu o primeiro livro que recolhe treze inatervenções. É a história não escrita de Havana, uma historia pequena que cresce pela visão do testemunho do convidado.
A maquete é enorme, impactante. A primeira reação de quem a vê é: esta cidade não se pode deixar perder! Falta-lhe um sistema de iluminação mais teatral, mais dramático, que é muito caro. E sobre tudo, que se tivesse localizado num lugar central, como La Rampa.