Raíssa de Oliveira: Como é a luta em lidar com o patrimônio e a cidade existente no dia-a-dia de um arquiteto?
Marcelo Ferraz: Essa é uma questão que me atrai muito e me incomoda muito. E uma coisa que incomoda faz você pensar. Incomoda porque é uma questão com a qual nós lidamos todos os dias. E não é somente em relação àquele patrimônio oficialmente colocado, mas à cidade como um todo. Você tem que fazer intervenções contemporâneas, construir na cidade que é refeita todos os dias. E aí você não encontra somente o patrimônio classificado e que tem um “selo”: Esse patrimônio é tombado pelo Estado, pela União e pela municipalidade. O tempo todo estamos esbarrando com essa questão de como fazer uma intervenção na cidade em relação a algo mais ou menos valioso. Acho que o patrimônio “classificado” é algo fantástico para refletirmos sobre a prática de projeto. Porque é como se ele fosse um espelho. Um espelho para o qual você olha e diz: será que estou à altura de fazer algo ao lado disso? Algo que em algum momento foi selecionado pelos homens e considerado bom? Essa provocação deveria servir para todos os arquitetos. Acho que a grande maioria não dá importância a essa reflexão e por isso a cidade está este farrapo, desconectada. Uma pessoa sequer pensa em dar uma continuidade em uma calçada ou num recuo de carros. As coisas são feitas completamente soltas. Os órgãos de preservação desde 1937 se preocuparam em classificar e preservar aquilo que tem um valor documental, principalmente documental. Ultimamente a gente tem discutido também outras escalas de valores, chegando hoje à questão imaterial. Mas é uma coisa nova ainda e, por outro lado, não dá pra ficar conservando tudo e todas as coisas porque você vai encher a cidade de cacarecos, como a Lina dizia. Não é por aí. Mas, aquilo que pode sobreviver e ser transformado e adaptado à vida contemporânea, é ótimo que seja. Não é preciso destruir a cidade velha e construir uma nova: elas andam paralelamente. Não é preciso ser contra torres altíssimas de apartamentos e escritórios porque você quer preservar a cidade antiga com a escala baixa e vice-versa. Você tem que trabalhar com coisas que conseguem sobreviver, que conseguem atender o uso atual. Eu acho o uso uma questão fundamental, ele é que determina o valor. Eu acredito nisso, se a coisa não tem mais uso não é possível ser aproveitada, não deve ser conservada. Se não é um documento, um grande testemunho da construção ou de alguma técnica arquitetônica, não tem porque ser conservada. Mas por outro lado depende muito do talento das pessoas. Uma antiga fábrica pode virar um grande conjunto habitacional, por que não? Ou um hotel! As fábricas da Zona Leste poderiam virar hotéis, flats. Ficaria maravilhoso. É uma experiência deliciosa pra todo arquiteto. Mas não é o que acontece. As pessoas olham de maneira tacanha: isso era uma fábrica e não dá mais para usá-la. Ora, você pode ter torres, elementos novos para as habitações, complementos. A questão está na capacidade do profissional. Neste ponto concordo com Lina e Lucio Costa: Lucio dizia que cada caso é um caso e eu acredito nisso. Cada caso é um caso que tem que ser analisado. . O que derrubar? Derrubar metade? Conservar a outra? Enfim, quais as escolhas que você está fazendo. Na arquitetura o tempo todo você está fazendo escolhas. Cada vez que a gente faz uma escolha uma nova realidade é colocada. A arquitetura é uma coisa absolutamente dinâmica e que pode alterar completamente a realidade. Por isso essa dificuldade de se formar critérios e parâmetros rígidos. Porque os parâmetros são móveis, são relativos.
RO: Os parâmetros ou são abstratos (“uma boa arquitetura”) ou emprestam parâmetros do urbanismo, por exemplo, dizem respeito à fachada, ao gabarito, etc. Não há um parâmetro na arquitetura. Qual o parâmetro para estabelecer uma relação entre o antigo e o novo?
MF: É muito difícil. Essa relação pode ser criada. Você não pode ser contra uma coisa criada, uma intervenção de um arquiteto moderno num edifício com características antigas porque ele vai destruir aquilo que estava lá. Mas ele pode fazer uma coisa melhor do que aquilo que estava lá. E quem é que julga? Esse é um problema. O que quero dizer é que não existe esta discussão. Ela não faz parte da agenda atual. Respeito muito o papel desses órgãos de preservação porque são eles que preservaram alguma coisa que restou. Porque se autorizarem qualquer coisa deliberadamente você já sabe no que o que vai dar. Você vê por aí. Vai ter muito arquiteto fazendo sua “obra-prima” em cima do patrimônio histórico.
RO: Aí nós caímos na discussão da formação. Se a discussão fosse baseada em um processo mais claro, nos métodos utilizados poderíamos gostar ou não daquilo, mas haveria uma elevação da discussão, ou seja, passaria da discussão arbitrária ou baseada em “achismos”.
MF: Sim, mas também não dá para ser científica, porque na arquitetura você escapa da zona da ciência e da técnica e entra na poética. Então é difícil. Você vê muitos entraves, opiniões tacanhas dos dois lados: de quem quer destruir e de quem quer preservar. Você pode dizer que alguns exemplos são maravilhosos; ninguém duvida da importância do Parque Ibirapuera e do SESC Pompéia. Foram momentos em que a cidade teve um respiro. Por outro lado você tem intervenções medíocres e mesquinhas que não buscam esse espaço maior de qualidade. E voltamos à questão: como fazer uma arquitetura de qualidade? Penso que as escolas têm esse papel. Isso de certa maneira na Europa é discutido. Um projeto de uma pracinha qualquer tem uma discussão em cima. Existe uma outra confusão que a gente deve evitar: aquela tal falácia que dizem que é preciso consultar a população e promover projetos participativos. Não existe isso. O arquiteto deve ter a capacidade de entender uma situação não só física, mas sócio-econômica de um espaço, de um bairro ou de uma comunidade. Deve conversar com as pessoas e tirar daí a sua resposta, o projeto. Deve devolver uma coisa de acordo com esta realidade percebida. Uma situação que não é apenas uma demanda física. Às vezes há uma demanda empírica ou subjacente à realidade imediata, que ninguém tinha pensado. Mas, por aqui não é assim, ficamos numa coisa mais óbvia de consultar a população: o que vocês querem? Queremos um hospital. Então fazemos um hospital; Queremos um terminal de ônibus; fazemos um terminal de ônibus. Uma praça, etc. Não, não é assim. Estas demandas óbvias você resolve com as pesquisas estatísticas. O importante para o arquiteto é ver além delas. É uma questão de comunicação: eu acho que arquitetura é comunicação. E deveria ser pensada mais a partir desse ponto de vista, da comunicação. Quantos projetos não funcionam e são desastres na cidade? A Praça Roosevelt é um desastre, um exemplo do que não se deveria fazer. O Anhangabaú é outro desastre, é um absurdo você vir da São João e cair num buraco com dois banheiros. Isso é o obvio, as pessoas devem pensar porque é que têm que dar esta volta, desviar e pegar a São João lá na frente. E esses desastres duram décadas às vezes. Até você retomar, rever, refazer... Arquitetura não é brincadeira.
RO: Você acha que cai na competência das escolas?
MF: Eu acho. O arquiteto deve se questionar o tempo todo, saber o que está acontecendo.