Raíssa de Oliveira: Nós falamos sobre o Anhangabaú e você disse que ali não havia a preocupação com o patrimônio histórico, mas a própria vontade de reconstituir um Parque já não é retomar uma relação mnemônica perdida e importante para São Paulo ligada é própria estrutura do território como ocupação, aquela mesma de um Vale. Ou seja, trata-se de memória da mesma forma.
Marcelo Ferraz: O texto do Vale do Anhangabaú é uma carta de princípios. Ali está dito: é o respeito para com o patrimônio das grandes cidades, das metrópoles. No texto há esta referência ao passado das cidades que permite uma vida social. Mas isso não é explícito no projeto do Vale do Anhangabaú. Esse passado monumental ninguém pensou nele e não fez questão. Mas aquilo que o vale foi no passado seguramente: aquilo que era vale, que era verde, que foi plantação de chá, uma fazenda, um parque. Retoma-se isso. Tem também uma brincadeira sobre o “Buraco do Adhemar”, onde vivia enchendo de água, propusemos um pequeno lago. Já era uma referência a um passado recente: o próprio “Buraco do Adhemar”. É lógico que o passado alimenta o tempo todo o projeto, mas não podemos ser prisioneiro dele.
RO: “Libertar as amarras”?
MF: É.
RO: É importante também entender como foi a participação no Concurso e o processo que passaram para fazer este projeto.
MF: O projeto do Anhangabaú foi feito por uma equipe grande. Nós juntamos o meu escritório e do André Vainer. A Lina não queria entrar no Concurso, ela dizia: “olha, nós vamos perder.” Mas terminou topando. Seria o momento para uma discussão maior sobre São Paulo, sobre o Anhangabaú. As conversas eram soltas, divertidas, mas a coisa foi tomando corpo. Era um trabalho de conversas longas, visitas, análise do material, desenho, e finalmente em três dias o projeto saiu. Foi desenhado em três dias e três noites, desenhado em nanquim e aquarela. No último dia e na última noite Lina passou a limpo aquela primeira prancha. Era um monte de desenho, em papéis soltos e ela passou a limpo. Cada um ficou com uma tarefa. Ela ficou com a tarefa de passar a limpo aquela prancha. Nós fizermos as outras duas, virando noite, cada um fazendo um pedaço, ordenando as idéias. O processo foi muito caloroso, quente. Isso foi sempre assim com a Lina, se você sugerisse algo ela já dizia “não” pra ver se você tinha fôlego para sustentar sua idéia. Nós ficávamos bravos, não entendíamos, mas no fim era uma maneira de levar o processo adiante. No final ela até incorporava aquilo.
RO: Qual era a principal preocupação neste projeto?
MF: Era devolver uma área de grande importância para a cidade de São Paulo. Devolver para o pedestre, para aquele que anda na cidade. Retirar o ar de passagem. Uma parte da cidade que virou um corredor sem agregar nada mais. A idéia era essa: São Paulo vai ganhar um grande parque. Você já pensou que maravilha?
RO: A estrutura que vocês criaram parece contraditória. Vocês criaram uma estrutura suspensa que vencia o acidente geográfico, o Vale. Vocês suspenderam uma estrutura para fugir do acidente mas, no entanto, criaram na própria estrutura o contorno deste acidente. Isso parece contraditório. Ao meu ver isso é provocativo e num certo sentido lúdico no sentido de retirar o fluxo rápido daquele lugar e retomar-se a atmosfera de passeio.
MF: Talvez fosse algo provocativo mesmo.
RO: É importante falar sobre esta estrutura pois muitos não entendem. Inclusive na época foi comparada com o Minhocão.
MF: A diferença é que a escala é outra. O Minhocão entope uma avenida, ela quase vai de prédio a prédio. Lá não, é um vale largo e esta construção é muito fina como uma fita que passa no céu. Porque ela passava tão alta? Porque passa bem mais alto que o Viaduto do Chá e depois ela desce. Esse sentido de sobe-desce é dado muito pelo o que está embaixo. É uma atitude de respeito ao que existe já ali. Poderia passar por um nível só. Tem esse lado divertido na história. É lógico que era um concurso de idéias. Eu tenho certeza hoje que caso ganhássemos esta estrutura poderia mudar. Era um concurso de idéias que depois iriam ser desenvolvidas, aprimoradas, de uma forma muito mais pragmática. Não é um absurdo criar este sobe-desce. É justamente distanciar-se de dois viadutos importantes: O Viaduto do Chá e o Santa Ifigênia. Claro que dá uma impressão de brincadeira, assim como o “Buraco” cheio d’água.
RO: Era provocativo?
MF: Era. não tem nada a ver com o Minhocão. Nós não podemos ser contra viadutos à priori. Em Chicago você tem uma espécie de Minhocão do trem, aquele o Loop. Ele anda no centro de Chicago, um centro denso, faz barulho (é de estrutura metálica). De repente a população se identificou com aquilo. Já propuseram retirar aquilo, enterrar. Tem dinheiro, mas a população não quer. Eles gostam disso, foi incorporado na imagem da cidade. Mas pode mudar mais adiante. Lá não é o Minhocão: tem uma diferença. Os viadutos não são elementos nocivos, este é um exemplo.
RO: Você acha que é por isso que este projeto é tão negado assim?
MF: Não sei. É negado?
RO: Ora, por quê não tem publicação do projeto?
MF: É, deve ser por negação, pelas pessoas acharem que é uma piada. E não é uma piada, é sério. As pessoas não entenderam a proposta. Claro que se não precisasse passar carros ali, seria maravilhoso. A proposta é um Parque no centro de São Paulo. Essa é a proposta. Não queríamos enterrar ninguém. Tem um desenho de Lina que compara as soluções adotadas com buracos de minhocas. E não é?
RO: Você concorda comigo que se você me diz que a proposta era um Parque isso já é provocativo porque o Concurso surgiu para resolver a questão dos fluxos?
MF: O Concurso dá margem pra isso. Você não tem que atender só à demanda. Claro que nós resolvemos os fluxos, demos as respostas. E era bonito. Aquilo que a Lina dizia: imagine os carros passando lá em cima, numa fita. Era bem interessante.
RO: Na minha opinião tem um estranhamento absurdo quando você vê isso desenhado. Mas penso que é a mesma sensação de ver os primeiros croquis para o MASP. E quando você vê o MASP construído você acredita que aquele desenho não era tão surreal assim. Acredito que depois desta experiência podemos acreditar em vocês.
MF: Como é que um desenho vira aquilo, né? Um desenho aparentemente ingênuo, surreal, chega a uma coisa tão importante, técnica.