Raíssa de Oliveira: Lina usava muitos termos como “presente histórico”, “continuidade histórica” e admitia algumas vezes que fazia um “restauro crítico”. No entanto, se pensarmos em Teoria da Restauração ela se contradizia em muitos momentos. Neste sentido não é necessário entender como a área da Teoria da Restauração define estes termos para podermos justificar ou entender melhor estas diferenças? Para você, o que significa o uso destes termos?
Marcelo Ferraz: Lina, primeiramente, era uma pessoa muito contraditória. Você não podia “escrever” o que ela dizia. Porque ela era um poço de contradição. Talvez isso seja uma das grandes qualidades da Lina. Ela era uma pessoa que dizia uma coisa hoje e amanhã dizia outra e você ficava tentando entender e até justificar para os colegas de trabalho e para você mesmo. E essa capacidade que ela tinha de mudar e alterar suas idéias era a genialidade dela. Para ser exato e justo: Lina era paradoxal. Isso era uma coisa fantástica. É muito perigoso para os historiadores que escrevem sobre a Lina tomarem ao pé da letra certas declarações dela. E eu vejo que as pessoas as tomam erroneamente. Eu acho uma piada, de dar risada. Tem muita coisa escrita por aí sobre a Lina que acho perigosíssimo. Não preciso citar aqui, não vou entrar em detalhes.
RO: Mas ela definia estes termos ou era apenas usado como argumento?
MF: Lina tinha formação e sabia o que significava restauro científico ou Carta de Veneza. Ela tinha estudado com Giovannoni e podia dizer isso com convicção. Era uma forma de dizer “alto lá, olha com quem vocês estão falando!” Ela tinha conhecimento e impunha respeito. Nesse sentido ela usava a Carta de Veneza. Como é uma carta de princípios a ser aplicada em infinitas situações, ela se torna flexível e permite que você dê sua interpretação.
A questão do “presente histórico” é fantástica. É uma grande formulação teórica que ela usava para justificar os seus projetos. Foi muito usado para justificar os projetos, principalmente em Salvador. O “presente histórico” é algo que guarda do passado aquilo que ainda vive, mesmo que hibernado, e você pode fazer aquilo aparecer e viver novamente através do projeto, da ação. Mas sempre está ligado à vida contemporânea, aos usos e necessidades atuais. Agora, aquilo que não serve, não levanta mais, você descarta – como eu falava no começo da conversa. O “presente histórico” é o presente que traz raízes, memórias. Mas é presente, não é passado. Ninguém vive no passado, assim como, ninguém vive no futuro. É uma coisa muito pragmática, então, nós fazemos projeto para um horizonte de hoje, da maneira que nós vivemos hoje. Como utilizamos os objetos, como nos deslocamos, nos comunicamos. Isso é presente. Lina é muito pragmática nesse sentido. Sempre é presente, ainda que carregado de elementos simbólicos ou históricos que enriquecem o imaginário para formular o que está por vir. O mundo é assim, deveria ser assim. Essa formulação é um ponto extremamente importante.
RO: Quando você fala deste tema você sai do aspecto meramente morfológico.
MF: Completamente.
RO: Você entra na questão da “prática social”, do lugar. Estas duas coisas me parecem os elementos de análise naquele momento do projeto para o Centro Histórico de Salvador. Acho que é nesse sentido que aparece a diferença com os outros arquitetos: na questão analítica. Ou seja, a “prática social” é quase intrínseca ao processo de análise neste caso. Caímos novamente na questão da formação.
MF: Acho que é isso. Gosto deste termo “prática social”. Meus colegas de trabalho e eu não conseguimos vestir a camisa daquele arquiteto que fica na prancheta, cultivando as “coisas geniais do desenho”. Não sei como é isso. Não estou fazendo piada e não é falsa modéstia, não é isso. A prática social no caso é dada, você está sempre buscando as relações com todos agentes que interferem no projeto; a política, no sentido mais nobre da palavra, principalmente com aquele que vai utilizar o projeto. Eu acho que isso aconteceu na Bahia. Se você verificar a proposta do Anhangabaú – que foi tida como piada, mas não era – também ocorreu isso. Era um Parque para São Paulo. Fazer a estrutura lá em cima, moderna e arrojada, com vãos enormes. Uma fita que passava no céu do Anhangabaú. Em baixo, o parque. Tudo aquilo para os pedestres. Essa necessidade ainda não vigora em São Paulo? Na Bahia a proposta de chegar ali, 1986, olhar a cidade semi-destruída e fazer uma intervenção tinha um peso. O que marca ali como intervenção é a recuperação do que estava faltando: complementos, consolidação. O que era para reconstruir nós não falseávamos. Fazíamos uma coisa nova, com uma linguagem nova, uma tecnologia nova. A linguagem – e isso é importante – não é a vontade do arquiteto. Não é assim: temos várias linguagens como estilos ou modelos à disposição. E uma linguagem circunstanciada depende de um momento, de contingências. Naquele momento havia uma fábrica pública que fazia pré-moldados de concreto, dirigida pelo arquiteto Lelé. Aliamos esta tecnologia existente – o pré-moldado – à possibilidade de recuperação rápida e econômica de um Centro Histórico. Isso nos fez mergulhar na técnica para desenhar corretamente, adequadamente, com aquela demanda, naquele momento. Não é uma vontade apriorística de usar uma forma porque a forma é o que resulta disso tudo. Mesmo quando você pensa no Restaurante Coaty, que parece ser a vontade do arquiteto de fazer uma coisa redonda e não quadrada. Isso está fora do trabalho da gente, essa vontade formalística. A forma é um resultado, e não ponto de partida.
RO: Lembro da afirmação da Lina sobre o MASP: “Eu não quis fazer o maior vão do mundo”.
MF: Exatamente. A gente não começa pela forma, terminamos pela forma. Isso faz diferença.
RO: Para mim é difícil enquadrar a Lina numa Escola da Teoria do Restauro como há uma tendência em se fazer. Na minha opinião estas questões sobre a preexistência vêm da sua experiência com o design, da busca maior de uma cultura autêntica e não entregue completamente ao mercado. Ou seja, sua formação, sua experiência somada à preocupação mais ampla com a cultura a colocam frente discussões sobre o que é fazer uma arquitetura neste ou naquele determinado lugar, ou melhor, como tratar com o existente. Sua pesquisa sobre o artesanato talvez já tenha colocado estas questões anteriormente sobre a preexistência.
MF: Eu acho que você tem razão. Eu dividiria esta questão em duas partes. Quando ela vem para o Brasil ela pensa que pode experimentar coisas novas, ousar mais que na Europa. Isso já está dito, todo mundo sabe: a América é livre do ranço e tudo mais. Ela não gostava que a comparássemos com Carlo Scarpa. É porque de certa forma Scarpa tinha todo um requinte em lidar com peças absolutamente valiosas, importantíssimas da história da humanidade, da arquitetura. Ele trabalhava em Veneza, em Verona. Tudo isso o fazia trabalhar delicadamente, com muito cuidado. As intervenções são sutis e às vezes você pode pensar que tem muita ‘firula’ nas soluções. Talvez seja por isso que Lina não gostasse da comparação. Ela era mais direta. Nada sutil. E essa é a diferença. Ela não queria ser comparada a nada e a ninguém. Os projetos abarcam dissonâncias e não contradições. É muito interessante isso. A Lina incorpora dissonâncias. Por isso é que as pessoas reclamam da escada do MASP, falam que o SESC Pompéia é horroroso, um bloco pesado. Ela não busca o equilíbrio, a proporção da composição das regras. É totalmente fora da composição clássica, não tenha dúvidas. Esse é um lado. Quando você fala do design está usando o termo no sentido mais alto da palavra, no sentido inglês de origem, que abarca o ato de projetar de forma ampla. O design é uma palavra que está absolutamente desgastada. Todo mundo diz que aqui na Vila Madalena tem lojas de design, imagina!? Neste sentido que você usa, eu concordo sim. É importante não relacionar design com objeto. Hoje se você diz isso (que sua relação com a preexistência vem da sua relação com o design) numa escola de arquitetura pode parecer a relação dela com objetos, no desenho de objetos e não com o desenho de arquitetura e cidades. Nesse sentido tem que ter cuidado, tem que ter uma nota de rodapé. Nesse sentido sim, é a via de uma leitura de em mundo sócio-cultural da formação italiana que vem para o Brasil e que vai se enriquecendo. Nem precisa dizer se é popular ou não popular, ela entra na cultura como um todo. Foi importante reafirmar a arte popular como algo distinto do artesanato. Muitos falam por aí que Lina gostava de coisinhas velhas, de bichinho, caquinho, cerâmica... Isso tem que ser evitado ao máximo porque não é por aí.
RO: É uma forma rasa de definir o seu procedimento?
MF: As pessoas usam muito isso para dizer que ela era meio assim “hyppie”, não é nada disso. Pelo contrário, era uma pessoa rigorosa e fazia tudo com rigor, exatidão. Não tinha sobra, não tinha bagaço. Era exata e concisa. Quando ela falava da criatividade na arte popular brasileira, era para você olhar pra aquilo como exemplo de saídas num mundo de dificuldades. Exemplos de soluções e não algo a ser reproduzido. Fazem uma confusão por aí. Quando ela usa sapé num projeto, as pessoas acham que é referência à arte popular, não é nada disso. É um equívoco que se propaga. Ela olhava para sociedade como um todo do ponto de vista cultural. Acho que a gente tem que olhar para o passado no momento de criação de algo novo. Tem que dialogar com uma arquitetura preexistente. Temos que olhar aquilo como testemunhos de um trabalho humano, até como fato humano, e não como pedaço de parede. Isso faz diferença quando você vai ponderar e decidir o que é que deve prosperar ou não. Aqui no escritório, lidamos com esse tema continuamente.