Raíssa de Oliveira: No anos 1980 percebe-se uma modificação nos princípios de preservação, até pelo processo de abertura política e democratização. No Iphan quem marca essa mudança é o Aloísio Magalhães. Eu queria saber qual a relação de Lina com Aloísio e essas mudanças?
Marcelo Ferraz: A Lina tinha um grande respeito para com Aloísio Magalhães. O Aloísio tinha grande importância porque estava formulando importantes princípios daquele órgão num segundo momento, depois dos pioneiros, com Lúcio e Mário à frente. Foi uma pessoa ligada ao design gráfico mas com uma reflexão importante sobre patrimônio histórico. Ele teve a importância também de introduzir a noção de patrimônio imaterial, que até hoje está em pauta. Pena que morreu tão jovem porque ele tinha conteúdo pra uma grande tarefa. Foi uma época importante. A década de 1970 foi um momento de profunda decepção da arquitetura, foi um horror no mundo inteiro, e no Brasil não foi diferente. Foi uma época que se destruiu muito, principalmente o patrimônio histórico. Então é um momento importante, uma tentativa de mudança. Mas não trouxe muitos resultados, acho que só percebemos agora. Havia um perigo muito grande também: de estabelecer uma cultura absolutamente preservacionista que poderia congelar tudo. Na verdade nós estamos muito atrasados no trato com o patrimônio histórico. O nível médio em Portugal, por exemplo, é muito acima do nosso. Eles discutem, têm parâmetros, critérios e conseguem discernir, falar de qualidade de projetos. Claro que têm também um patrimônio mais importante no sentido de sua antiguidade. Mas ao mesmo tempo eles lidam com isso experimentando coisas muito interessantes. Eles enfrentam este antigo de forma bastante contemporânea. No Brasil é como se houvesse uma trava, um medo de perder – até porque o que se faz por aí não é nada bom. E por outro lado há uma defasagem na formação, nos critérios.
RO: No mesmo período vocês depararam com as questões relativas às intervenções em espaços considerados importantes marcos referenciais da cidade, o que poderia ser motivo de comparações com a atuação do órgão oficial. Vocês enfrentaram esta comparação?
MF: Acho que não. A gente trabalhava de outra forma. Em Salvador talvez, mas no Anhangabaú não. No SESC Pompéia nós fizemos um trabalho corajoso, mas não era tombado. Aquilo foi um grande choque em São Paulo, tinha esta coisa ousada da diferença de escala entre a parte nova e a parte antiga. Na Bahia sim, enfrentamos o pessoal do patrimônio histórico, não só do IPAC mas também do Iphan. Tivemos discussões pesadas. Seja sobre a Ladeira da Misericórdia, seja na Praça da Sé. Principalmente nas praças do Centro Histórico.
RO: Mas no Anhangabaú também há um enfrentamento deste problema, porque não?
MF: Nós queríamos adentrar com um parque na trama urbana, o máximo possível. Sem a idéia de cerca limitando:”agora você entrou no parque”. Mas estas coisas não eram discutidas; a questão era apenas diluir o fluxo de ônibus na periferia do parque e liberar aquele espaço. A concentração de ônibus em um terminal é ignorar a cidade. Você tem que dar fluxo e o terminal acaba gerando um problema. Mas enfim não havia uma discussão direta sobre o patrimônio. Em Salvador sim, a gente sabia que estava fazendo uma proposta, talvez não soubéssemos a dimensão. Tínhamos o apoio da prefeitura e isso era uma coisa incrível. Mas eu acho que deve ter causado um choque grande por lá, porque que em 4 anos não fomos convidados para ir à Universidade nenhuma vez. Isso parece um sintoma bastante preocupante. Isso ficou evidente quando foram contra o projeto do Terreiro de Jesus e Cruzeiro de São Francisco.
RO: A própria prefeitura que os contratou?
MF: Não. A Prefeitura dava todo o apoio. O embate era com o Iphan e com o IPAC. As discussões eram intensas porque parecia que aquilo iria desfigurar o centro. Infelizmente aquilo que veio depois foi um horror. O único mérito da preservação do chamado Pelourinho é o de ter freado o processo de ruína progressiva, ter colocado tudo em pé. Daí pra frente só vejo defeitos: falsas fachadas, o tingimento da cidade com aquelas cores que nunca existiram, os fundos de quadras imitando praças de Shopping Center, destruindo o urbanismo português – verdadeiro valor daquele conjunto-, tudo isso é grave. Será que vamos continuar fazendo isso para sempre? Construir as fachadas antigas copiando as formas e usando técnicas novas? O Iphan lida o tempo inteiro com este dilema. Aí voltamos aos parâmetros, o que pode e o que não pode? Os concursos de arquitetura são importantes, mas não é só isso. Existe também a questão da competência.
RO: A experiência de Ouro Preto diz muito sobre esta questão dos parâmetros. Em Ouro Preto também há a questão do tecido urbano antigo e os problemas dos parâmetros para a construção do novo. Quando Lucio Costa fala da possibilidade de usar formas simplificadas das fachadas coloniais nos edifícios novos, está falando apenas das casuais lacunas no tecido antigo. Mas isso é rapidamente generalizado como parâmetro a ser seguido até mesmo na construção dos novos edifícios fora deste tecido antigo. Mas mudando um pouco o foco, fale como foi o enfrentamento em Salvador das ruínas? Vocês se depararam com as ruínas naquele momento?
MF: Nós enfrentamos uma ruína na Ladeira da Misericórdia com muros de pedras muito bonitos e com pedaços de alvenaria de tijolo. Deixamos mesmo como ruína pois não era nossa intenção falsear nada. Apenas fizemos sua consolidação e usamos lajes para criar um terraço. O contraforte passava por ali segurando uma casa e outra e fazia também esta ligação. Era muito pouco o que tinha da casa antiga, só havia uma ruína e não podíamos refazer falsamente. Parece demagogia, mas é novamente uma questão de honestidade. Nós estabilizamos o que havia com aqueles elementos novos como contrafortes que acabam criando muralhas na cidade. Este elemento não começa em forma. É um elemento técnico que estabiliza algo antigo e permite criar algo novo. As ruínas foram encaradas assim. Se em alguma casa faltasse um pedaço de telhado nós retirávamos de outra e completávamos. Naquela outra, a gente fazia outra coisa, não falseávamos um telhado, virava laje, um terraço. Essa experiência da Ladeira da Misericórdia era um Projeto Piloto e a idéia era propagar para o Centro Histórico todo. Por trás havia uma proposta sócio-econômica, de geração de trabalho e fixação dos moradores.
RO: A questão da habitação era importante.
MF: Fundamental. Todos os imóveis eram habitação e comercio local.
RO: Pelas fotos e desenhos de análise foi possível ver que a preocupação era em lidar com essa situação existente, não só sobre os aspectos morfológicos mas sobre o uso daquele lugar, da “prática social” como havíamos dito. Inclusive há uma foto de meninos brincando numa piscina criada pelo rompimento de uma adutora na Praça da Sé. E foi exatamente aí que vocês propuseram aquela Roda d’Água. Isso fez lembrar muito um procedimento que Lina descreveu quando falava do SESC Pompéia numa entrevista publicada na Revista Projeto. Ela dizia que quando foi visitar pela primeira vez aqueles galpões havia meninos jogando bola e mães fazendo piquenique e isso é que ela queria dar continuidade. Esse procedimento registrado da Roda d’Água lembrou muito essa afirmação. Na minha opinião mostrou exatamente como se constrói um programa com esta visão de “presente histórico”.
MF: Concordo plenamente com sua fala. Quando a gente chegou no SESC Pompéia eu era estudante e Lina estava adorando aquela atmosfera. E ela dizia: “O que é que nós temos que fazer aqui? Dar continuidade nisso que já acontece. Vamos fazer um projeto levando isso em consideração.” Lina fez uma revolução, destruiu coisas, quebrou o piso, etc, mas sem perder de vista aquela atmosfera que acontecia lá. Ela repôs aquilo de uma maneira mais organizada e numa escala maior. É isso, no SESC você pode dizer que é verdadeiro isso. Tem uma frase do Siza: “Uma coisa é o lugar físico, outra coisa é o lugar para o projeto. E o lugar não é nenhum ponto de partida, mas é um ponto de chegada”. E eu completaria: projetar é captar e inventar o lugar a um só tempo..
RO: Quando você vê a proposta da Roda d’Água no Centro Histórico você acha bastante estranho. Assim como você tem estranhamentos em quase todos os projetos. Mas depois se percebe que isso não é gratuito.
MF: Eu me lembro dessa foto.
RO: Na própria análise já há também uma história contada por vocês, um “presente histórico” levado ao extremo. Ou seja, aquele momento do acidente é uma história presenciada por vocês e colocada como proposta. Mesmo no processo da execução da obra, quando há um erro e Lina pinta aquilo de vermelho, acho que é uma radicalização do “presente histórico”.
MF: Ela se autodenuncia.
RO: O que faz parte da obra, daquele momento.
MF: Se não fosse algo grave, claro.