João Piza: Você trabalhou freqüentemente com participação popular e com patrimônio cultural. Você vê uma ligação entre as duas coisas?
Giancarlo De Carlo: Sim. Eu não sou um restaurador, não acredito que o restauro exista. Projeto é transformação, por definição. Se tiro as manchas, talvez faça outras manchas ou talvez tire demais as manchas. O resultado é sempre uma transformação.
Em todos os edifícios históricos sobre os quais trabalhei pensei sempre que deveria mudar, em um jogo muito sutil, porque devo conservar os seus valores. E os valores são não só estéticos, afinal representam um período da história, o trabalho humano. Os edifícios foram projetados pelos arquitetos, mas depois feitos pelos pedreiros. Desta forma, arquiteto e pedreiros fizeram juntos. É preciso recuperar estes valores que são coletivos, que representam as pessoas. Não é sempre, mas em alguns casos, demolir é perder um pedaço da história. História de verdade, não a que está nos livros, mas a história dos seres humanos, que se reconhecem e falam das coisas. E este é já um processo de participação.
Urbino foi um caso muito especial, onde moram poucas pessoas. Eu ali conheço quase todos. Agora a nova geração um pouco menos, mas quando trabalhava muito intensamente em Urbino, conhecia quase todos os moradores e com todos eles discutia o que estava fazendo. Era um modo de participação, mas isto é raro, não ocorre sempre. Nem sempre se pode ter a participação conversando com as pessoas, pois tem muitos casos em que é gente demais.
Em Milão, por exemplo, é completamente diferente. Então, nestes casos, é preciso saber ler. A história das pessoas e os seus desejos e expectativas estão escritos na cidade. Mas é importante saber ler, pois se encontrar diante destes signos é similar a alguém que olha um disco de vinil. Tudo está inscrito no disco, mas precisamos colocá-lo na vitrola para poder entender. Mas se alguém fosse capaz de entender estas micro-ondulações microscópicas, não precisaria da vitrola, leria diretamente. E assim é a cidade, na minha opinião.
É preciso saber ler e saber quais são os signos que contam e quais não contam, para escolher entre eles os sinais da história. Então, é um pouco como se existisse a participação, pois se está falando com um grande coro de pessoas.
A arquitetura não é uma coisa que acaba quando se encerra o canteiro de obras. Ela é contínua, porque depois entram as pessoas, começam a modificar as coisas – o espaço interno, a fachada, os pequenos sinais – e isso é processo arquitetônico contínuo. E quando se sabe ler este processo arquitetônico, há informações formidáveis. Deste modo, quando se penetra na obra e se busca entender, se busca descobrir e trazer à tona os significados, o trabalho sobre o patrimônio histórico passa a ser um modo de participação.
Mas aquilo que me interessa na participação não é apenas a técnica para juntar as pessoas, para entender que coisas as pessoas desejariam, mas também como se faz uma arquitetura participada, pois muitas das arquiteturas de hoje em dia não passaram por uma interação, são sem significado, sem forma.
Os novos edifícios para escritório são todos com paredes de vidro. Como podem ter participação? Apenas se pode estar ali. Por outro lado, como pode a arquitetura ser participada? Deve ser cordial, precisa permitir que se discuta, que se converse com ela. No caso dos edifícios de vidro a que me referi, a tecnologia é estúpida. É uma tecnologia especializada, onde a pessoa que está lá dentro não entende nem controla.
Então, ao invés de buscar tanta high-tech, deveria se buscar a low-tech, baixa tecnologia, compreensível por todos, mais humana. E que não é menor, pois com a baixa tecnologia foram alcançados resultados surpreendentes. Se pensarmos por exemplo num bumerangue australiano: é uma tecnologia fantástica, o mesmo que um computador. É feito com uma tecnologia simples, o australiano nativo entendia o que era, como se fazia, riscava e ajustava: “talvez tirando um milímetro navegue melhor”.
A tecnologia deve ser compreensível para ser humana, ou sai de controle, e podem usá-la contra você. Hoje se pode ver muito bem isso com a informação, que pode manipular à vontade, pois é feita a partir de uma alta tecnologia secreta, só conhecida por quem trabalha com ela, de modo que ninguém pode realmente participar.
Tem arquiteturas que são participadas. Por exemplo, Le Corbusier, que esteve sempre o mais distante possível da participação (era avesso a conversar com as pessoas sobre o que desejavam). Quando fui à igreja de Notre Dame de Ronchamp, me deparei com uma arquitetura extraordinária, verdadeira; algo que se sente ao entrar, independente de se ser religioso. Le Corbusier provavelmente nunca pensou na participação, mas como era um grande arquiteto, intuiu estas coisas, e usou formas e técnicas muito simples.
Ao contrário, não é possível participar das coisas de Mies van der Rohe. Era um grande arquiteto, mas autoritário de um modo absurdo. E era a serviço do capitalismo. Por isso construiu por toda parte na América: usava uma tecnologia incompreensível. Incompreensível no sentido que se entende, mas não se apropria. Prende a vida, restringe a vida.