Brasília 50 anos
Brasília, enquanto cidade tombada, apesar de alguns pesares vai bem, obrigado (ou obrigada, nunca sei). Já, enquanto capital, não posso dizer a mesma coisa. A sucessão de estórias desabonadoras que se originam na cidade provenientes de moradores permanentes ou impermanentes (ou seja, aqueles que para cá vem em função de mandatos, nomeações ou sinecuras) ocorridas nos últimos 30 ou 40 anos, fazem lembrar a Gaiola de Ouro – a Câmara de Deputados do Rio de Janeiro - das décadas de 40 e 50 (guardadas as proporções da “moralidade“ da época).
Assim, a Brasília de Lúcio Costa, vem resistindo, bravamente, à maioria das investidas do setor imobiliário, à falta de planejamento do desenvolvimento regional e econômico do território do DF e do entorno que a abrange - sobretudo a abandonada periferia do estado de Goiás - à ausência quase absoluta de transporte público de massa, associada à manutenção de um patético sistema de ônibus arcaico nas mãos de empresas privadas de administração também arcaica, com sustentabilidade apenas política...
Enfim, por ter-se transformado numa “cidade-estado” de concepção quase medieval, por interesses políticos, torna-se evidente que o sonho dos arquitetos do 60 – cujas raízes se estendiam até o Príncipe de Maquiavel – foi atropelado pela realidade do Século XX e, agora, pela tecnologia do Século XXI, porém, com a mesma moralidade de outrora.
Por que digo cidade-estado: porque a Capital da República Federativa do Brasil (e faço questão do grifo) – a Brasília criada por Lúcio Costa – corresponde a um espaço, 430 vezes menor do que o espaço ocupado pelo “Estado” do Distrito Federal, o DF, cuja população é 6,5 maior do que a do Plano Piloto que possui menos de 400 mil habitantes.
Tal desproporção, uma vez planejada, tomando-se em consideração todas as variáveis, inclusive a do efeito simbólico que deve ter uma capital, não seria necessariamente um desastre nem econômico e menos ainda, social. Porém exemplos existem por aí de falhas que podem resultar em desastres com altos custos. A cidade de Washington, de gueto branco do século XIX passou para um gueto negro no século XX (com alto grau de periculosidade), rodeado de subúrbios de burocratas brancos, em sua maioria, e com um centro cívico tombado cuja altura máxima não poderia ultrapassar a altura da cúpula do congresso (isto citei no seminário de 1967). Somente 4 décadas de planejamento, de projetos de transportes de massa, de recuperação urbana, de exercícios de tolerância racial e de alguns bilhões de dólares depois, aquela cidade recupera, e de certa forma inaugura, uma era de tolerância racial que se reflete na própria presidência.
Nossa intolerância, que abrange o planejamento urbano de nossas cidades e nossa arquitetura não é necessariamente racial. Tradicionalmente ela tem sido social e os mecanismos de seu funcionamento sempre repousaram nas sinecuras e no paternalismo do estado. Internacionalmente, nossa tradição profissional quase sempre esteve atrelada ao estado, aos príncipes, aos déspotas (mesmo esclarecidos, déspotas) e no século XX com o crescimento da classe média no Brasil, nos adaptamos àqueles que numa escala menor serviam aos sub-déspotas do setor imobiliário. O BNH, das casinhas de pombo, é um bom exemplo disso; os conjuntos habitacionais...
Numa outra escala, em Brasília, produziu-se a Asa Norte, onde com raras exceções, predomina a arquitetura da pobreza de espírito. Onde se gerou o golpe das varandas, onde as coberturas, embora “regulamentadas” por lei geraram sétimos andares eclético onde estilos como o visigodo e o elisabetano convivem com churrasqueiras regionais e templos gregos. Brasília, a capital, apesar de tombada possui uma legislação própria ditada pelos interesses das demais regiões do DF. Seu entorno imediato, os lagos Sul e Norte, o Sudoeste, o Guará, o Cruzeiro, a Octogonal, etc. possuem administrações próprias, com sub-culturas próprias, estilos próprios...
Quem defende essa tese, revelada com exclusividade para o Vitruvius, é o superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) no Distrito Federal, o arquiteto Alfredo Gastal, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1964; Ph.D, pela Universidade da Pensilvânia, em “Desenho urbano para países em desenvolvimento”, 1982; titulo revalidado pela USP – Doutor em Arquitetura e Urbanismo.
Para Gastal, Brasília não corre o risco de perder o status de Patrimônio Cultural da Humanidade. Os problemas da cidade, em sua opinião, são exógenos e decorrem da falta de planejamento regional do território do Distrito Federal. Brasília tem menos de 400 mil habitantes, mas está cercada por mais de 2 milhões de pessoas sendo que a capital provê mais de 70% do empregos de todo o espaço do DF e de parte do seu entorno. A proteção do Plano Piloto, entende o indivíduo Gastal, está na razão direta do desenvolvimento econômico regional da macro-região do seu entorno associado a uma revolução radical no transporte público de massa, à geração de empregos fora da capital, a descentralização da maquina burocrática, e quiçá, a uma reforma política e territorial para o DF.
Morador de Brasília desde 1967, Gastal assumiu a superintendência do IPHAN no DF em julho de 2004. Em entrevista ao jornalista João Carlos Henriques e ao arquiteto Eduardo Pierrotti Rossetti, Gastal resume como tem sido esses seis anos “pelejando” gauchamente pelo do tombamento de Brasília. Ele tem se destacado como um homem de diálogo aberto. Conversa com o representante dos donos de quiosques da mesma forma que com governadores ou secretários de estado.