João Carlos Henriques e Eduardo Pierrotti Rossetti: O que mais pode ser destacado do trabalho realizado pela Superintedência?
Alfredo Gastal: Entre 2006 e 2007 o IPHAN DF fez o levantamento minucioso de 23 monumentos do Oscar Niemeyer para efeitos de tombamento. Até 2006, somente a Catedral tinha esse título individualmente. O processo dessas edificações já foi aprovado pelo Conselho Consultivo do IPHAN, embora, por problemas burocráticos, não tenha sido publicado até agora. O tombamento de prédios individualizados ocorre porque, como já mencionado anteriormente, a cidade é tombada volumetricamente e por escalas (monumental, residencial, gregária e bucólica) o que significa que as edificações não são tombadas individualmente. Publicou-se também o livro “A invenção da superquadras”, pesquisa produzida pelos arquitetos da UnB, Matheus Gorovitz e Marcílio Marques Ferreira, cuja segunda edição já está esgotada mas que deverá ser novamente editado. Distribuído a todas as faculdades de arquitetura do Brasil, sua qualidade técnica e gráfica despertou a atenção de arquitetos de todo o país e da América Latina.
Ao mesmo tempo fizeram-se os inventários dos bens móveis e imóveis dos palácios mais importantes da cidade, como o Itamaraty, o Alvorada e o Planalto. Ainda este ano iniciaremos o Supremo Tribunal Federal. Paralelamente, conclui-se o inventário da obra de Athos Bulcão. No campo da restauração do patrimônio moderno, a superintendência coordena e supervisiona nesse momento, a substituição total da malha de suporte e dos vitrais da Catedral Metropolitana de Brasília e a restauração de parte de sua estrutura e do campanário, e também a restauração do Palácio do Planalto, a qual inclui a reposição dos móveis originais do fim da década dos anos 50 e início dos 60 dos mais importantes designers de móveis do Brasil. Vale lembrar que esse trabalho está sendo feito através de um acordo entre o IPHAN e a administração do Palácio do Planalto empregando jovens restauradores de mobiliário treinados no ano passado, por esta Superintendência, escolhidos entre estudantes de baixa renda das cidades satélites do Distrito Federal. Um detalhe que me parece importante: dos trinta que formamos só conseguimos treze; os demais possuem empregos de tempo parcial em depósitos de antiquários ou lojas de móveis usados situados na região onde moram.
Fizemos a restauração da Igrejinha Nossa Senhora de Fátima. Acompanhamos também a restauração do Palácio da Alvorada que ficou primorosa e que incluiu a capela cujo teto era de Athos Bulcão e havia desaparecido sob inúmeras camadas de tinta.
O Patrimônio Imaterial – que é basicamente o patrimônio da cultura popular – também está na alçada do IPHAN. Nosso trabalho não se resume apenas à investigar e preservar a cultura erudita, a produção cultural do povo é peça fundamental do nosso dia a dia e nesse sentido temos desenvolvido varias pesquisas. A primeira foi sobre as Feiras Populares do DF, “Um estudo sobre as feiras permanentes de Brasília”. Acabamos de lançar agora um livreto com a primeira parte de um estudo intitulado: Inventário dos Terreiros do DF e Entorno e estamos finalizando uma pesquisa sobre o Vale do Amanhecer que será publicada até o fim do ano.
JCH/EPR: Foi preciso se fazer algum tipo de adaptação durante a restauração dos Palácios de Brasília?
AG: Estes são um patrimônio moderno, porém dos anos 50 e 60. Comparativamente ao que existe hoje em informática, comunicações e telecomunicações não havia nada. Do ponto de vista da segurança dos edifícios governamentais vis a vis a violência a ao terrorismo hodierno, tampouco. Adaptar os palácios às novas tecnologias de informática e de segurança nós apoiamos. Por outro lado, concordo que a manutenção do caráter dos edifícios da Esplanada é uma tarefa diuturna e difícil. Cada ministro, ou melhor, cada burocrata, mesmo com um mínimo de poder é capaz de inventar um tipo de, por exemplo, ar condicionado diferente para substituir os anteriores mesmo que a eficiência seja a mesma, mas isso venha a resultar num trambolho na fachada principal do edifício. Há um caso exemplar que descobri outro dia: uma via criada especialmente para a entrada e saída de ministros de um determinado tribunal cuja única função é essa – deixar e recolher os ministros e, portanto, só tem sentido ter mão única. Os funcionários, entretanto, descobriram que se ela tivesse mão dupla seria mais fácil, para eles, entrar e sair por qualquer lado, mesmo que uma das saídas resultasse numa perigosa meia contra mão. Além de tirar a dignidade original da entrada projetada para as autoridades tal solução resultou num acúmulo de uma série de cones e outras traquitandas de transito associadas a uma ridícula cerquinha de metal branco. A capacidade de invenção da burocracia é infinita. Resta-nos ainda ficar, às vezes, discutindo por dias o restauro do arremate de um edifício, por que a técnica usada na época da construção foi esquecida e aí, o “conserto” feito gera infiltrações, derruba pastilhas. Não é só um problema de fazer obrinhas, mas de restaurar aquilo que foi feito no passado. Por incrível que pareça, apesar da rapidez com que Brasília foi construída, existem detalhes extremamente sofisticados para arremates de várias coisas, sobretudo de pedra. É um absurdo ignorar tais tecnologias que vieram de todos os quadrantes do país e que se perderam.
JCH/EPR: Mas existem diferenças entre o desenho do Lúcio Costa e a cidade imediatamente projetada e construída...
AG: Há uma diferença, mas quando o Lúcio fez o desenho de Brasília ele deixou por escrito e com esboços várias instruções sobre aspectos básicos do projeto por ele idealizado. Coisas tais como a ocupação das superquadras, as áreas de lazer, a disposição do eixo monumental, da Praça dos Três poderes... As características básicas da cidade foram todas definidas na época de sua criação de acordo com os padrões existentes. Só que nem a Pitonisa de Delfos, nem Nostradamus imaginaria que aquele país da Bossa Nova se transformaria no país de hoje, nem que o rodoviarismo do qual Lucio falava se transformaria no rodoviarismo de quase um carro per capita sem transporte público. As diferenças entre a Brasília originalmente desenhada e a Brasília atual, do ponto de vista do urbanismo são poucas e não afetam o conjunto como um todo. O problema maior está na metropolitanização do Distrito Federal e na tendência dos governos em aceitarem o fato de Brasília transformar-se no centro dessa metrópole.
JCH/EPR: E muita gente reclama que não tem onde estacionar os seus carros?
AG: Obviamente que não há vagas. Numa cidade cercada por mais de 2,2 milhões de pessoas que não têm transporte público, sendo que 70% dos empregos do DF e do seu entrono estão concentrados no Plano Piloto, alguma deve acontecer! São pessoas gastam o que não podem comprando automóveis usados, para não ficar esperando o ônibus que não chega, no abrigo que não existe, sob o sol ou a chuva do cerrado – ambos inclementes – onde também é possível que o condutor não pare... Enquanto, por outro lado, os governos, sucessivamente, há 45 anos, investem em outras coisas que não o transporte público tais como palácios, monumentos e mais pistas e viadutos para automóveis. Acho que já está na hora de alguém se perguntar, principalmente num ano de eleição: onde está a mão de obra? Onde está o emprego?
Nesse momento me parece conveniente lembrar e relembrar – para os que esqueceram - uma citação de Lúcio Costa para que todos saibam que ele, na época em que desenhou Brasília, sabia perfeitamente o que estava fazendo: “A cidade não será, no caso, uma decorrência do planejamento regional, mas a causa dele: sua fundação é que dará ensejo ao ulterior desenvolvimento planejado da região. Trata-se de um ato deliberado de posse,...” (7)
JCH/EPR: Como responder as críticas de radicais de que o IPHAN-DF teria flexibilizado em relação aos chamados puxadinhos dos comércios da Asa Sul?
AG: Entendo que o IPHAN não flexibilizou nada. Simplesmente foi realista. Os puxadinhos tinham até 18 metros. A idéia do Lúcio, nos anos 50, era a de que aquelas áreas comerciais deveriam ser ocupadas por verdureiros, açougueiros, e outros pequenos comércios locais como ocorria no Rio, e em todas as cidades brasileiras. Porém, nos últimos 50 anos o Brasil mudou radical e aceleradamente. Os pequenos comércios de varejistas foram absorvidos pelas grandes redes de supermercados que hoje, inclusive, já possuem sucursais de bairros, mas que, obviamente, não dão espaço de concorrência ao pequeno negociante. Por outro lado, os bares e restaurantes em Brasília não aceitaram os lugares que lhes foram destinados em princípio nos setores comerciais centrais que como os demais das grandes cidades, fenecem à noite. Tentou-se revitalizar outros lugares, como o Setor Comercial Sul, mas não vingou por uma série de circunstâncias principalmente de uso, econômicas e de segurança. Então, o realismo capitalista, descobriu que as superquadras estavam ficando jovens, e que a juventude agora já se prolongava por mais vinte ou trinta anos e que a melhor localização seria a das Super Quadras. Isso começou há uns 20 anos e aos poucos foi aumentando geometricamente e sem controle objetivo. Moviam-se morosas ações judiciais e os puxadinhos cresciam em número e tamanho. Tivemos reuniões com a Secretaria de Desenvolvimento Urbano, os sindicatos das categorias mais diversas: bares, restaurantes, farmácias, comércio... com instituições patronais, com todos os níveis do governo do DF e finalmente optou-se por permitir um avanço. Temos que fazer uma opção: somos ou não uma cidade de fato, com todas as vantagens e desvantagens de uma urbis – o que, efetivamente era o objetivo de seu criador. O que ocorre hoje, nesses dias da véspera do cinqüentenário de Brasília é que o governo mais uma vez agiu com pequenez política, mesmo sabendo que a UNESCO se reunirá aqui em três meses: adiou até o fim de 2010 a aplicação da lei que venceu em 06/04/2010. Por outro lado, nesse período, não houve praticamente nenhuma fiscalização por parte do Governo do Distrito Federal. O lasser-faire é uma das práticas dominantes da política local. E o resultado é esse: a cidade pode se deteriorar ao poucos, mas seriamente, por falta de cumprimento dos acordos entre o IPHAN e o GDF.
nota
7
Memória Descritiva do Plano Piloto de Brasília, 1957.