Ainda que as primeiras entrevistas desta série tenham envolvido personagens representativos de segmentos e culturas distintas, sendo as duas primeiras da cena norte-americana – Peter Eisenman, norte-americano, arquiteto de influência internacional, professor de Yale, na Costa Leste, e Hernán Diaz Alonso, argentino, arquiteto em Los Angeles e Diretor da SCI Arc na Costa Oeste – e a última do contexto europeu – Rodo Tisnado, peruano, professor visitante de diversas escolas de arquitetura francesas e peruanas e sócio-fundador do Architecturestudio em Paris –, esta próxima entrevista tem um significado especial: Pierre Fernandez, francês, arquiteto de Beaumarchés e diretor da Ecole Nationale Supérieure d´Architecture – Ensa, à Toulouse, no Sudoeste da França, referência internacional na pesquisa sobre Arquitetura e meio ambiente e a transição ecológica, é um amigo próximo de muitos anos. Portanto, mais que inevitável, é imprescindível uma introdução repleta de histórias pessoais.
Conheci Pierre no final dos anos 1980. Recém havia ingressado como professor auxiliar na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – FA UFRGS, em uma época de crise do Movimento Moderno e dos debates pós-modernistas, dos quais havia me refugiado em uma pesquisa de mestrado no Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Propar UFRGS na linha de Teoria, História e Crítica da Arquitetura, para entender o fenômeno e também por algum interesse nas tentativas de estabelecer relações entre a prática do projeto e a arquitetura bioclimática, como era chamada a abordagem arquitetônica do meio ambiente na época. Por consequência, na graduação da FA UFRGS, fui escalado para tentar fazer a ponte entre estes campos, indo trabalhar no outrora ateliê de Composição na Arquitetura 1 com os colegas professores Edson Mahfuz, referência nas discussões sobre o Movimento Moderno, e Carlos M. M. Maia, um veterano da prática profissional, e concomitantemente na disciplina teórico-prática de Habitabilidade das Construções, capitaneada pela profa. Lúcia E. Mascaró, referência brasileira da área (1). A professora Lúcia havia recém entabulado convênio de pesquisa com a França, coordenando, pelo lado brasileiro, o primeiro acordo do Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes com o Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil – Cofecub, que visava o fomento de pesquisas e intercâmbio entre os dois países.
A França, desde os anos 1970, já despontava com certo pioneirismo como referência no campo da pesquisa sobre economia de energia através do uso passivo de recursos nas soluções arquitetônicas, normas reguladoras com estímulo à otimização de parâmetros ambientais na construção civil e no desenvolvimento de softwares para simulações de desempenho climático dos projetos de arquitetura. Neste acordo, a primeira missão prevista consistia na vinda do professor Pierre Fernandez, coordenador pelo lado francês, a Porto Alegre para aulas no Propar UFRGS, quando surpreendeu a todos, saindo praticamente direto do aeroporto para um jogo do Inter contra o Flamengo, no Beira Rio. Na segunda vinda de Pierre a Porto Alegre, acompanhado da esposa, a carioca Elaine Fernandez, com o episódio do Beira Rio, tomei coragem de convidá-los a se hospedarem no Edifício FAM (2), onde eu ainda residia. Mais uma boa surpresa, pois aceitaram a oferta de imediato e bom grado. Desta vez foram direto do aeroporto para um assado de dia dos pais no Edifício FAM, que Pierre até hoje comenta como monumental, e desde ali se estabeleceu uma amizade ininterrupta de mais de trinta anos, com Pierre, Elaine e familiares de todos os lados.
De lá para cá Pierre retornou muitas vezes a Porto Alegre: em diversas oportunidades para ministrar disciplinas no Propar, orientar pós-graduandos e dar sequência às pesquisas conjuntas; posteriormente, para algumas conferências e aulas na Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura do Centro Universitário Ritter dos Reis – FAU UniRitter. Além disso, também auxiliou a estabelecer contatos entre o meio da arquitetura no sul do Brasil com tecnologias da construção civil na França, como a intermediação entre a indústria de pré-fabricados em concreto Premold, de Porto Alegre, com empresas francesas congêneres. Pierre ainda realizou visitas informais, em diversas oportunidades em que passava pelo Brasil a trabalho ou a passeio, sempre com conversas animadas sobre futebol, música brasileira, política e os amigos pelo lado do Brasil e da França, além de Arquitetura.
Por outro lado, em 1991, fui a Toulouse fazer um estágio de pesquisa, com bolsa Capes, dentro do mesmo convênio. Em quase um ano de estadia, trabalhei com a equipe do então Laboratoire d´Architecture Bioclimatique da Ensa, na época constituído pelos arquitetos Pierre Fernandez, Michel Gerber (3), com quem acabei colaborando no projeto de um concurso para Montpellier (4), Jean-Pierre Cordier, o biólogo Alain Châtelet e o físico Jean Soum. Na temporada em Toulouse, além da pesquisa sobre a aplicação de softwares ainda em desenvolvimento para simulações do desempenho climático de projetos e construções, como o Casamo-Clim e o Oasis, e também em softwares pioneiros de modelagem 3D como o Exception (5), ainda outras experiências pessoais foram igualmente importantes: primeiro ir a Beaumarchés, uma bastides (6) de menos de mil habitantes no centro do Gerse, na região de Occitânia, à oeste de Toulouse, e conhecer o pai do Pierre, Monsieur Fernandez, um construtor da região que vivia em uma casa pertencente à família há mais de quinhentos anos. Assim como Pierre criou especial afetividade com meu pai, Moacyr Moojen Marques, igualmente eu com o dele após uma noite de conversação política, em um entrevero de francês com português, bebendo Armagnac até o amanhecer.
Outra experiência foi, depois de uma breve temporada hospedado no apartamento de Pierre e Elaine na Rue de Coutelliers, próximo a Le Pont Neuf e o rio Garonne, morar em uma casa de estudantes, no bairro Toulouse le Mirail, projeto do início dos anos 1960 do escritório Candilis-Josic-Woods, integrantes do Team 10 e adeptos do conceito Matt Building, que despertou meu interesse em pesquisas sobre o tema, que ainda seguem em marcha atualmente (7). Ainda, não menos importante, conhecer dois estudantes de arquitetura brasileiros que cursavam a graduação em Toulouse, que igualmente são amigos de primeira ordem até hoje: Guilherme Lassance (8), com quem fizemos, em um Ford Fiesta vermelho antigo, um roteiro Le Corbusier que incluiu Ronchamp e La Tourette, com visita no caminho às salinas de Arc-et-Senans de Le Deoux. Depois, Dóris Binz (9) que, com Guilherme, foi a Paris me acompanhar nas visitas aos escritórios de Paul Chemetov e Cristian Portzamparc para as entrevistas da pesquisa de mestrado, onde os Grands Travaux de Paris, promovidos por François Mitterrand, eram peça central. Dóris e Guilherme fizeram juntos seu trabalho final de graduação, em Toulouse, orientados pelo Pierre, com uma proposta de arquitetura vernacular na floresta Amazônica que teve grande repercussão na Ensa Toulouse.
Nos anos 1990, ajudei Pierre e diversos pesquisadores brasileiros a criar e fundar a Rede de Arquitetura e Meio Ambiente da América Latina – Ramal, que objetivava promover trocas acadêmicas entre pesquisadores da área. Retornei a Toulouse muitas vezes. Sempre que viajei para o velho continente, a parada em Toulouse tornou-se obrigatória. Ainda em 2008 fui a Escola Tècnica Superior d'Arquitectura da Universitat Politècnica de Catalunya – Etsab UPC em Barcelona fazer doutorado sanduíche, e novamente a ponte com Toulouse foi frequente, assim como quando Pierre veio morar em Recife, trabalhando para a Embaixada da França no Brasil, e entrecruzamos com outros amigos de lá, como Fernando Diniz Moreira, Roberto Montezuma e o meio do Documentation and Conservation of building, sites and neighbourhoods of the Modern Movement – Docomomo, com quem algumas atividades conjuntas ainda estão em marcha.
Por fim, mais um acontecimento mágico, porém seguido de um trágico: ainda na década de 1990, recebi, em Porto Alegre, uma carta (não havia e-mail na época) de Dóris Binz noticiando: "Adivinha com quem vou casar? Com um arquiteto chamado Pierre Fernandez de Toulouse". Foi uma grande surpresa e demorou enorme tempo para através de nova troca de correspondências esclarecer que o Pierre Fernandez da Dóris também era francês e cidadão de Toulouse, arquiteto e igualmente prestes a ter uma esposa brasileira, mas não era o mesmo Pierre com quem trabalhei na pesquisa e nem se conheciam pessoalmente! Com esta coincidência incrível e esta triangulação, da qual fui um dos vértices, ficamos todos muitos próximos, nos visitando reciprocamente durante anos. Passei a chamar o professor de "Pierre 1" e o marido da Dóris de "Pierre 2" (10).
Quando faleceu o pai do Pierre 1, o que me deixou muito triste na época, este se mudou para Beaumarchés para dar apoio à família e emprestou seu apartamento em Toulouse para Dóris e Pierre 2, que estavam reformando sua casa. Então a confusão chegou ao clímax: dois Pierres, franceses de Toulouse, arquitetos, casados com brasileiras, no mesmo endereço. Não dava para saber para quem eram as correspondências...
Fui à França em 2017 realizar as entrevistas da atual pesquisa, voltei a visitar Paul Chemetov e estabeleci contato com Richard Scoffier, por intermédio de Guilherme Lassance. Estas duas devem ser as entrevistas treze e quatorze, respectivamente, a serem publicadas. Combinamos de nos encontrar, todos os Pierres e esposas em Paris, para realizar as entrevistas e matar as saudades. Pierre Fernandez 1 finalmente não conseguiu ir. Pierre 2 foi com Dóris e nos acompanhou durante alguns dias de pesquisa, e em outro roteiro Le Corbusier que fizemos juntos em Paris. Foi meu último encontro com Pierre 2. Em março de 2020, ele faleceu tragicamente em um acidente de motocicleta. Voltei a ter apenas um amigo Pierre. Faço minha homenagem ao que se foi no final desta entrevista.
Com o desencontro em Paris e dada a proximidade pessoal, Pierre 1 e eu fizemos a entrevista on-line, entre Beaumarchés, Toulouse e Porto Alegre, sem dificuldades, retomando a questão do meio ambiente, que foi o disparador destes anos todos de sólidas amizades.
notas
1
Ver MASCARÓ, Lúcia. Energia na edificação – estratégia para minimizar seu consumo. São Paulo, Projeto, 1985. Este trabalho, antes de ser publicado, recebeu o primeiro prêmio nacional do II Prêmio Light de Energia na Edificação, em 1984. A publicação coloca os conceitos de forma predominantemente gráfica, visando um maior didatismo em relação ao meio acadêmico e profissional.
2
Edifício de habitação coletiva, projetado e construído por Carlos M. Fayet, Claudio L. G. Araújo e Moacyr Moojen Marques, nos anos 1960, para suas próprias famílias. Ver MARQUES, Sérgio Moacir. FAM. Porto Alegre, Associação dos Docentes da Faculdade de Arquitetura de Porto Alegre – ADFAUPA, 2016.
3
Arquiteto suíço, trabalhou com Mies van der Rohe nos anos 1960 e estudou urbanismo no Illinois Institute of Technology em Chicago. Nos anos 1970 se converteu em um dos pioneiros em Arquitetura Bioclimática na França. Seu escritório na região do Languedoc-Roussillon é considerado por muitos a primeira Casa Solar Passiva, construída sobre as ruínas de uma antiga fazenda. Foi professor na Ensa/Toulouse de 1974 a 2002 e colaborou na criação do Groupe de Recherche Environnement et Conception en Architecture et Urbanisme – Grecau, na escola. Faleceu em 2002 com a idade de oitenta e um anos. Foi a Porto Alegre em uma das missões do acordo Capes Cofecub, deu aulas no Propar e proferiu uma concorrida conferência, com Pierre Fernandez, na FAU UniRitter. Hospedou-se no FAM, no apartamento do Arquiteto Claudio L. G. Araújo e igualmente foi batizado com um churrasco descomunal, que o deixou com um tom azulado. Apesar da barreira do idioma, a linguagem universal compartilhada pela admiração a Mies fortaleceu grande afinidade entre Gerber e Araújo. Ver: Décès de Michel Gerber. Le Conseil Régional de l’Ordre rend hommage à l’architecte Michel Gerber qui vient de disparaître à l’âge de 81 ans. Ordre des Architectes, Paris <architectes.org/actualites/deces-de-michel-gerber>.
4
Ville de Montpellier: Groupe Scolaire Val de Croze – Concour. Realisation: Ceccotti Entreprise Generale. Equipe Anne Marie Adenis, Michel Gerber, M. M. Tjoyas. Colaboração Sérgio M. Marques e Anna Paula M. Canez. Projeto desenvolvido na cidade de Perpignan, no sul da França, onde foram aplicados diversos conceitos desenvolvidos na pesquisa. Igualmente oportunizou a criação de laços de amizade com a arquiteta Anne Marie Adenis, que igualmente ocasionou muitas visitas posteriores a Perpignan. Ver <ufrgs.br/arqconcursosrs/acervo/1991-2/ville-de-montpellier-franca-participacao/>.
5
Boa parte do trabalho de pesquisa consistiu em comparar as medições in loco de iluminação natural e variação térmica em uma escola projetada e construída por Michel Gerber, na cidade de Collioure, na costa do Mediterrâneo, próxima a fronteira com a Espanha, com simulações realizadas nos softwares Casamo-Clim e Oasis, analisando resultados. O software Exception era um antecedente promissor do SketchUp, que rodava na plataforma do System Seven, nos primeiros computadores Macintosh. Ver MARQUES, Sérgio Moacir. Conhecimento, estudo e adaptação às práticas empregadas na pesquisa da Arquitetura Bioclimática na França. Relatório de pesquisa, 1991.
6
Cidades novas, construídas na França, na Idade Média, para consolidar território aos respectivos feudos. A região do Gerse é igualmente emblemática do que os franceses chamam de la France Profonde, onde predomina uma gastronomia de raiz como cogumelos, trufas, fois gras, le magret, além dos tradicionais queijos e vinhos du pays e o Cassoulet, uma espécie de feijoada branca da região de Toulouse.
7
Escrevi artigo relacionando esta abordagem em alguns projetos de Cláudio L. G. Araújo. Ver MARQUES, Sérgio Moacir. Memphis: uma análise tipológica necessária. Porto Alegre, Arqtexto (UFRGS), v. zero, 2000, p. 104-115. Posteriormente o tema esteve presente na orientação de mestrado sobre a mesma obra no PPGAU UniRitter Mackenzie. Ver QUADROS, Luthiane. Indústrias Memphis – Outro caminho para a cerâmica armada na arquitetura moderna do Rio Grande do Sul – 1970/1980. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Centro Universitário Ritter dos Reis, 2015. E atualmente, mais uma vez, na orientação de doutorado intitulada Rastreando Mat-Building: estudo histórico-crítico de sua evolução, de Cristina Gondim, em andamento, no Propar UFRGS.
8
Guilherme se graduou em arquitetura na Escola Nacional Superior de Arquitetura de Toulouse (1992), fez Mestrado em Ambiances Architecturales et Urbaines – DEA na Escola Nacional Superior de Arquitetura de Nantes (1994) e Doutorado em Ciências da Arquitetura na Universidade de Nantes (1998). De 1998 a 2002, foi professor e membro do Conselho Científico e Pedagógico – CPR da Escola Nacional Superior de Arquitetura de Toulouse. Atualmente é Professor titular e vice-diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro – FAU UFRJ e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo – Prourb UFRJ. Atua também como professor visitante da Escola Nacional Superior de Arquitetura de Paris Val-de-Seine – Ensapvs em Paris, e como membro do Conselho Científico do Laboratoire Infrastructure, Architecture, Territoire – Liat da Escola Nacional Superior de Arquitetura de Paris-Malaquais. Colabora nesta pesquisa auxiliando na realização de conexões com o meio acadêmico francês e está contribuindo na realização da entrevista com o professor e arquiteto parisiense Richard Scoffier, que será publicada posteriormente.
9
Dóris Binz, filha do Comandante Binz da Varig, que pilotou o primeiro voo comercial desta companhia entre Brasil e França, se graduou em arquitetura na Escola Nacional Superior de Arquitetura de Toulouse (1992). Fez mestrado (Diplôme d’Études Approfondies en géographie en aménagement) sobre a adequação da Arquitetura Moderna em clima subtropical úmido – Brasil, com estudo de caso sobre o Palácio da Justiça em Porto Alegre (Faculté de Toulouse le Mirail, 1998) e Architecture, Environnement et Développement Durable (C.I.F.C.A. – Direction de l’Architecture et du Patrimoine, 2007). Trabalhou como colaboradora em diversos escritórios de arquitetura de Toulouse e região do Midi-Pyrénées. Atualmente é arquiteta concursada da prefeitura de Toulouse como Responsável Técnica pelos Edifícios Escolares (Mairie de Toulouse – Direction de l’Éducation, 2016).
10
Pierre Fernandez 2 nasceu no mesmo ano que eu (1962), se graduou em arquitetura na Escola Nacional Superior de Arquitetura de Toulouse (1987), colaborou no escritório Hamiltton & Associates em Londres (1988-1991), na Agence Vigneu & Zilio Architectes – Toulouse (1991-1993) e Cardete & Huet Architectes – Toulouse (1993-1999). Fundou a Société d’exercice libéral à responsabilité limité – Selarl Pierre Fernandez em Toulouse (2007-2020).