O cineasta Kleber Mendonça Filho é autor de três longas-metragens ficcionais de grande sucesso de público e de crítica – O som ao redor, de 2013; Aquarius, de 2016; Bacurau, dirigido ao lado de Juliano Dornelles, de 2019 –, feito incomum para um diretor de apenas 52 anos. Nascido e criado em Recife, Mendonça Filho está longe de ser um fenômeno fortuito. Inserido em um contexto de excelência em se tratando da arte cinematográfica, são muitos os pares e filmes locais que têm se destacado nas últimas décadas, casos de Lírio Ferreira (Baile perfumado, 1997, com o paraibano Paulo Caldas), Cláudio Assis (Amarelo manga, 2002; Febre do rato, 2011), Marcelo Gomes (Cinema, aspirinas e urubus, 2005; Viajo porque preciso, volto porque te amo, 2009, ao lado do cearense Karim Aïnouz), Daniel Aragão (Boa sorte, meu amor, 2012), Hilton Lacerda (Tatuagem, 2013), Gabriel Mascaro (Ventos de agosto, 2014; Boi neon, 2015), Leonardo Lacca (Permanência, 2015), Camilo Cavalcante (A história da eternidade, 2015).
O curioso dessa experiência é o entrelaçamento dos trabalhos, que pode ser exemplificado pela atuação de Juliano Dornelles, que além da codireção de Bacurau assina a direção de arte dos outros dois longas de Kleber Mendonça, e dos acima citados filmes de Leonardo Lacca e Daniel Aragão. Outro bom exemplo é o excelente ator Irandhir Santos, pernambucano de Barreiros, que atua em A História da eternidade; Cinema, aspirinas e urubus; Febre do rato; Tatuagem; Viajo porque preciso, volto porque te amo, além de participações importantes em Aquarius e O som ao redor. O cruzamento de experiências do coletivo de recifenses dedicados ao cinema se vê na própria carreira de Kleber Mendonça Filho, que vai se assentando em posições diferentes ao longo do tempo – público, crítico, roteirista e diretor.
Nesse universo artístico fabuloso, ao mesmo tempo cosmopolita e enraizado na cena local, parece ecoar a obra “Eu vi o mundo... Ele começava no Recife”, mural modernista pintado pelo pernambucano Cícero Dias nos anos 1930. Esse recifecentrismo estará presente em futuro documentário, com roteiro ainda em elaboração, onde Kleber Mendonça convocará a lembrança do Recife de sua infância e adolescência. Ocupa lugar especial em suas lembranças o Cine Art Palacio, espaço prazeroso das sessões de cinema nos finais de semana. Durante a pesquisa inicial, o roteirista descobriu Rino Levi, autor do edifício construído em 1937. O conjunto da obra do arquiteto paulista foi mérito de pesquisa iconográfica de Abilio Guerra, que resultou em livro publicado em 2001. Foram tais circunstâncias pessoais que colocaram em contato entrevistado e um dos entrevistadores do primeiro episódio da segunda temporada do programa Transa Marieta.
A presença do cineasta recifense no portal Vitruvius está longe de ser uma novidade. O papel estratégico ocupado por edifícios e ambientes urbanos em suas películas explica o interesse causado por sua obra dentre arquitetos e urbanistas e justifica os textos que observam sua obra a partir dessa área do conhecimento. Roberto Ghione, por exemplo, comenta a banalidade da vida contemporânea, onde o enclausuramento das pessoas se dá nos âmbitos psicológico e urbanístico:
“O final, a vingança de um fato antigo, rebarbas de uma época de coronelismo que ainda perdura, retrata um desenlace tão banal quanto as vivências e arquiteturas exibidas. O som da morte é o mesmo som da festa. Tudo se mistura e confunde atrás das grades da vida cotidiana: a violência implícita, a especulação, o consumismo, o medo, o tédio, o racismo, as ameaças, a inveja, a arrogância, a delinquência. Poucas manifestações de felicidade, muito estresse de uma vida pouco merecida nos espaços desolados e pouco estimulantes que oferece a cidade ao redor” (1).
Na mesma revista Resenhas Online, outros dois autores tratam do mesmo filme: João Paulo Campos Peixoto vê a história como denúncia da sobrevivência arcaica do coronelismo, que se materializa na dinâmica urbana e social não só recifense, mas brasileira (2); em seu texto, Caio Sens acompanha a estrutura do roteiro e a sagacidade com que é materializado nas cenas, dentre elas a sequência encenada no engenho do patriarca da família, onde a decadência das instalações corresponde à derrocada do antigo poder rural (3). Na revista Minha Cidade, Carlos Eduardo Japiassú e Maria de Lourdes Nóbrega se debruçam sobre as transformações urbanas vividas pela capital pernambucana, sendo a segregação espacial um reflexo da ampliação exponencial das diferenças de classe que resultam no aumento dos muros divisores de propriedade e a ampliação de sistemas de vigilância privados, com homens armados e equipamentos eletrônicos (4).
O segundo longa de Kleber Mendonça, Aquarius, mereceu duas resenhas no portal Vitruvius. A primeira, de Roberto Bottura, comenta o quanto a arquitetura dos edifícios e a própria cidade estão entrelaçadas às vidas dos personagens, em especial em suas memórias afetivas – viver é morar em um lugar, em uma cidade (5). A segunda resenha, assinada por Helena Nosek, explora o vínculo dos fartos exemplos de favorecimentos e privilégios com a clássica interpretação da formação brasileira: Raízes do Brasil, livro publicado por Sérgio Buarque de Holanda em 1936 (6). E dois dos entrevistadores de Kleber Mendonça para essa edição – Abilio Guerra e Caio Guerra, pai e filho – comentam, sob pontos de vistas diferentes, Bacurau, o último filme do diretor. O primeiro enxerga na história diversas referências aos fatos históricos da história nacional e às obras de arte de nossa tradição cultural, onde verdades e mentiras são intercambiáveis (7). No segundo texto, apresentado oralmente em vídeo, o autor demonstra de forma convincente como o desenvolvimento da estrutura narrativa é pautado pela transformação de um eu “individual” em um “eu coletivo”, que do ponto de vista político-ideológico significa a evolução da revolta pessoal ineficaz em revolução de submissos despertos, até então submetidos à ordem patriarcal secular (8).
Mesmo sendo um recorte minúsculo dentro do universo crítico imenso que mereceu os filmes de Kleber Mendonça, os artigos publicados nas revistas do portal Vitruvius demarcam características reincidentes em suas obras – dentre elas a arquitetura e o urbanismo, produtos eloquentes da estrutura socioeconômica –. que, em seu conjunto, revelam a dialética da modernização brasileira: a transformação epidérmica de um corpo social renitentemente patriarcal.
A conversa que se segue tem a participação do roteirista Caio Guerra, da atriz Maeve Jinkins, da crítica Magaly Corgosinho, do cineasta Roberto Gervitz e do arquiteto Abilio Guerra, que prepararam um roteiro de entrevista cujas partes tentam dar conta dos diversos aspectos comentados nesse texto introdutório: a presença do Recife em seu imaginário poético (“Memórias da juventude”), a mudança de perspectiva na sua evolução intelectual e artística (“O crítico e o roteirista”), as predileções, soluções e invenções recorrentes em seus filmes (“A carpintaria do cineasta”), as relações diretas e mediadas entre a narrativa cinematográfica e a realidade social (“Arte e sociedade”), a abrangência e os limites de um projeto estético dialeticamente fruto e contestador da realidade histórica (“Resistência e novos caminhos”).
Além dos três longas-metragens – vencedores de importantes prêmios em festivais ao redor do mundo –, a conversa se enveredou por documentários (A Copa do Mundo no Recife, 2015; Recife frio, 2009; Crítico, 2008) e curtas-metragens (Noite de sexta, manhã de sábado, 2006; Eletrodoméstica, 2005; Vinil Verde, 2004; Enjaulado, 1997). Na conversa, o diretor confirmou os vínculos temáticos e expressivos entre os curtas e os longas sugeridos pelos entrevistadores.
O quanto a pretensão original foi fiel à sua proposta original poderá ser avaliada na comparação entre o roteiro elaborado previamente e sua efetivação na forma de entrevista.
notas
1
Sobre O som ao redor, ver: GHIONE, Roberto. A cidade ao redor. Resenhas Online, São Paulo, ano 12, n. 143.02, Vitruvius, nov. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/12.143/4947>.
2
PEIXOTO, João Paulo Campos. O som ao redor e a nova roupagem do coronelismo brasileiro. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 181.03, Vitruvius, jan. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.181/6380>.
3
SENS, Caio. Um estranho no condomínio. Apontamentos acerca de O som ao redor, de Kléber Mendonça Filho. Resenhas Online, São Paulo, ano 14, n. 166.02, Vitruvius, out. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/14.166/5767>.
4
QUEIROZ, Carlos Eduardo Japiassú de; NÓBREGA, Maria de Lourdes Carneiro da Cunha. O Recife d’O som ao redor’. Cidade de muros. Minha Cidade, São Paulo, ano 17, n. 202.01, Vitruvius, maio 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/17.202/6519>.
5
BOTTURA, Roberto. Arquitetura e resistência em Aquarius. Resenhas Online, São Paulo, ano 16, n. 184.04, Vitruvius, abr. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/17.184/6506>
6
NOSEK, Helena. Aquarius, um mergulho de cabeça nas raízes do Brasil. Resenhas Online, São Paulo, ano 15, n. 177.04, Vitruvius, set. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/15.177/6202>.
7
GUERRA, Abilio. Deus e o diabo no Fausto de Goethe Ou sobre quando Bacurau deglutiu Hans Staden. Resenhas Online, São Paulo, ano 18, n. 212.06, Vitruvius, ago. 2019 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.212/7458>;
8
GUERRA, Caio. Bacurau. Anatomia de uma revolução. Resenhas Online, São Paulo, ano 20, n. 232.03, Vitruvius, abr. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/20.232/8064>.
[texto de Abilio Guerra]