Bloco 1. Memórias da juventude
Abilio Guerra: Nosso primeiro contato foi quando você mostrou interesse pelo Cine Art-Palácio em Recife, de 1937. Como sou editor e um dos autores do livro sobre Rino Levi, arquiteto responsável pela obra, acabei atendendo ao apelo de um amigo comum e entrei em contato. Compreendi, em nosso diálogo, o enorme apreço que você tem por esse cinema, uma memória antiga e poderosa. Você poderia falar desse garoto, ou jovem rapaz, e sua relação com o edifício e com o que ocorria lá dentro, a projeção de filmes?
Caio Guerra: No final dos anos 1980, você, o Marcelo Gomes e outros amigos organizaram o cineclube “Jurando Vingar”. Você poderia nos contar um pouco sobre como foi a experiência? E também sobre a importância de criarmos uma cultura de cineclubes no Brasil?
Magaly Corgosinho: Em 2006, você fez o curta Noite de Sexta, Manhã de Sábado. O filme é “descolado” formal e tematicamente da sua obra. Em que contexto surge esse curta? Quais são o desejo, a experiência e a observação que o motivou na realização?
Bloco 2. O crítico e o roteirista
Roberto Gervitz: Eu assisti a uma projeção do filme Crítico em uma sessão “work in progress”, durante o Festival “É Tudo Verdade”, em 2008. Me lembro que a plateia era formada em sua grande maioria por críticos e eu, depois da sessão, expus que me senti bastante desconfortável com reações dos espectadores que riam de alguns cineastas que expunham suas tristezas ou suas queixas da crítica, fragilizados que estavam no delicado momento de lançamento de seus filmes. Os críticos entrevistados no filme, por sua vez, me pareciam bem mais à vontade, pois eram entrevistados em situações bastante cômodas e cotidianas e pouco eram postos em cheque sobre os dilemas de sua profissão. Uma única crítica, a Deborah Young, do Variety me chamou a atenção, pois revelou a angústia que sentia pelos erros cometidos. Quando fiz o meu comentário, me pareceu que você não levou tal diferença em consideração, talvez porque até ali, a sua função de crítico fosse a sua principal ocupação. Como você vê o filme hoje? Se o refizesse, mudaria alguma coisa?
Caio Guerra: Em suas obras, você quebra muitas convenções de roteiro. Temos incidentes incitantes falsos ou extremamente atrasados, como no caso de O Som ao Redor e Bacurau, mudança de protagonistas ao longo da obra antes da resolução de conflitos previamente estabelecidos como centrais à narrativa, além de uma série de outras pequenas tramoias que não vou listar porque tomaria tempo demais. Sinto que sempre que você quebra uma convenção, tem um movimento deliberado em busca de objetivos maiores, algo que você coloca acima da estrutura. Como você definiria esses objetivos? O que você diria que está buscando trazer para o mundo com seus filmes?
Magaly Corgosinho: Estou interessada em saber como você faz a mediação entre crítica e sua própria obra cinematográfica. No seu filme Crítico, Carlos Reichenbach e Fernando Meirelles mencionam que tiveram outra percepção sobre o que fizeram a partir do olhar de críticos. Em outra oportunidade, Cao Guimarães comentou que só teve noção do que tinha feito quando Consuelo Lins falou para ele sobre como ela enxergou o filme. Você, que foi crítico de cinema, filma com um olhar simbiótico crítico-diretor ou consegue dissociar essas personas? Como você enxerga, hoje, o papel da crítica, e ela já fez você perceber novos aspectos sobre os seus filmes?
Bloco 3. A carpintaria do cineasta
Caio Guerra: Eu percebo que a maior parte das suas estórias têm premissas relativamente simples, com situações iniciais básicas pequenas, mas que sempre se desenrolam em conflitos potentes, levando em consideração questões históricas, estruturais, conceituais e imagéticas essencialmente brasileiras. É possível ver que existe uma pesquisa profunda sobre brasilidade nos seus filmes. Em geral, como funciona o processo de pesquisa para preparar seus roteiros?
Roberto Gervitz: O Som ao Redor trouxe um olhar original ao cinema brasileiro. Usando de uma narrativa em que o espectador não domina exatamente o que está acontecendo ou para onde está indo, mesmo nas situações mais prosaicas, o seu filme cria uma tensão nada óbvia nas relações entre as pessoas que nos transmite a sensação de que algo está para acontecer. Com isso ele escancara os arcaísmos estruturais da sociedade moderna brasileira. Você acha que o fato de ser Pernambucano, estado de grandes contrastes, permitiu que seu olhar fosse mais agudo a respeito da permanência dessas estruturas coloniais que são essenciais para entender as relações entre as classes no Brasil?
Magaly Corgosinho: Entendo que os curtas Enjaulado e Eletrodoméstica contêm elementos desenvolvidos no seu longa de 2013, O Som ao Redor, sendo a crítica à classe média o “cordão umbilical” que liga esses três filmes. Há uma consonância muito clara – especialmente entre Eletrodoméstica e O Som ao Redor –, que replica, inclusive, algumas passagens e cenas icônicas (como a da máquina de lavar) do curta de 2005. Gostaria que você comentasse como se deu esse processo de dilatação de sua percepção sobre a classe média desde Enjaulado, passando por Eletrodoméstica, até chegar a O Som ao Redor. Houve alguma motivação especial que te levou a “retomar” Eletrodoméstica e realizar O Som ao Redor?
Caio Guerra: Entendo que você gosta de induzir o público a pensar que a história será sobre uma personagem ou uma situação, só para depois subverter essa expectativa e desenvolver a história para um caminho inesperado. O que te leva a fazer esse tipo de escolha? Como você espera que isso impacte o público?
Bloco 4. Arte e sociedade
Maeve Jinkings (vídeo 1): Leitura de Walter Benjamin, Sobre o conceito da história, Aforismo IX
Abilio Guerra: Seus filmes parecem articular dois planos temporais. O primeiro, aderente ao desenrolar da trama, acompanha a evolução dos personagens. O segundo, mais denso e cifrado, é o tempo histórico mais largo, como se você dialogasse com os grandes intérpretes da formação brasileira, casos de Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Junior e tantos outros, onde fica claro que as mazelas que nos afligem hoje são legadas pela história da opressão e da ignomínia. O que me parece especialmente interessante em seus filmes é a contaminação sofrida pela arquitetura, e até mesmo objetos, por essas sobrevivências do passado. Ilustro a questão com o casarão decrépito do patriarca Francisco (Waldemar José Solha) de O Som ao Redor, ou mesmo o cinema arruinado dentro da propriedade. Também o edifício Aquarius, que passa a sofrer de patologias em momentos dramáticos da história. Você poderia comentar um pouco essas questões?
Roberto Gervitz: Clara, a protagonista de Aquarius, é uma mulher cujo comportamento e universo cultural estão ligados às conquistas libertárias dos anos 1960. Em Bacurau, temos novamente a presença de músicas ligadas a movimentos culturais deste período (na MPB e no cinema), bem como certos ícones daquela época, como o disco voador e seu design claramente Pop 60's. Temos também a luta armada e, me parece, uma referência à droga que depreendi ser produzida pelo casal nu em uma horta de sua casa. Já os vilões têm uma apresentação mais contemporânea e pop-futurista quase de Histórias em Quadrinhos. Para mim está claro que você promove nestes dois filmes um resgate daqueles tempos. Você concorda com essa observação? Se concorda ou mesmo se não concorda, como você vê essa presença dos anos 1960 em ambos os filmes?
Magaly Corgosinho: Vou retomar Eletrodoméstica, que foi escrito em 1994 e filmado dez anos depois. O que mudou nessa década que separa o primeiro roteiro e a filmagem do curta? Alguns desses eletrodomésticos, por exemplo, ainda não existiam em 1994, o que fazia com que a relação entre as pessoas, a relação com o tempo e até com suas casas fosse outra. Como você analisa a classe média nesse período entre Eletrodoméstica e O Som ao Redor?
Caio Guerra: Existem muitos signos que se repetem nos seus longas: discussões sobre sistema de poder, com oposições bem marcadas, caso da construção de comunidades e indivíduos; comunicação e isolamentos; e também da cordialidade afiada e de um afeto real, que são absolutamente opostos. Como você acha que essas questões surgiram para você como cineasta? Além disso, gostaria de aproveitar pra pedir que você falasse um pouco sobre a dicotomia entre o abandono e o progresso no Brasil.
Roberto Gervitz: Bacurau é o seu filme mais popular e é, sem dúvida, um belo trabalho de co-direção com o Juliano Dornelles, assim como também são os teus outros dois filmes. Nele notei uma narrativa claramente inspirada nos westerns, por exemplo, Sete Homens e um Destino, ou ainda o seu original, Os Sete Samurais. Ao mesmo tempo, há um resgate de ícones e valores dos anos 1960, entre os quais se destaca a Luta Armada, tematizada na música de Geraldo Vandré. Há também uma amálgama dessa luta política com o Cangaço. Ou seja, a aliança entre a guerrilha com sua luta "anti-imperialista" e o banditismo resgatado do passado e agora redivivo com Pacote, o matador de aluguel que resolve se engajar (ele estaria mais para Volante/Milícia do que para cangaceiro). Há também o bando de Lunga que se coloca a favor da população de Bacurau e que é protegido por grande parte dos moradores, apesar de bandido movido(a) por seus próprios interesses. Arrisco dizer que Lunga poderia facilmente ser associado com os traficantes que ocupam as comunidades e as tiranizam, mas também as tornam dependentes de suas benfeitorias. Nesse sentido, muitos veem o seu filme como uma perigosa associação dos que lutam contra a opressão e contra a morte, com aqueles que se mobilizam primordialmente por interesses pessoais e mercantis e não são menos cruéis em ação. Como você vê essa interpretação de seu filme?
Bloco 5. Resistência e novos caminhos
Magaly Corgosinho: Nos seus trabalhos, a memória e a resistência estão muito presentes e funcionam como um motor narrativo em Bacurau, de uma maneira mais explícita e como chaves importantes para compreensão da história; em Aquarius, através da resistência da protagonista em manter suas próprias memórias; e em O Som ao Redor, uma resistência não-subversiva – como acontece em Bacurau, por exemplo –, mas a resistência a uma estrutura social de exploração extrema, aos moldes de Casa Grande & Senzala. Para você, fazer cinema, mais do que uma forma de expressão, é forma de resistência? Em eventuais trabalhos que você já tenha encaminhado ou apenas pensado, esses aspectos também estão presentes ou teremos uma “mudança de eixo”?
Roberto Gervitz: Clara, protagonista de Aquarius, afora as características já colocadas acima, é uma mulher fortemente apegada à sua história que está plasmada em seu apartamento. Tal espaço parece ser indissociável, pois é parte constitutiva de sua identidade. Portanto, temos aí uma temática existencial. Ao mesmo tempo, a resistência de Clara em permanecer no apartamento pode ser lida como parte de uma agenda liberal em que a propriedade é algo sagrado e deve ser respeitada acima de tudo. Por outro lado, a insistência de Clara ganhou cores de uma contestação revolucionária e estética. Eu li que você chegou a comparar Clara a Dilma. Qual é a sua visão de Clara e das questões em jogo em Aquarius?