Lívia Fernanda Ribeiro Nunes e Natalia D’Agostin Alano: O que nos reúne hoje, aqui em Porto Alegre, é o 21° CBA. Há 74 anos, na cidade de São Paulo, acontecia o 1° CBA. Naquela ocasião, a temática do congresso se centrava na função social do arquiteto, cujo sentido estava na atuação desse profissional junto às periferias das cidades brasileiras, e por objetivo: a transformação da sociedade. Entendemos que não são todas as profissões que trazem o debate da função social com tanta evidência. Contudo, para nós, arquitetas e arquitetos, essa função ainda se mantém como um dos principais itens da nossa agenda. Perguntamos: para você, o que significa “função social do arquiteto” e por que ela ainda está tão presente no debate?
Gilson Paranhos: Veja bem, eu acho que em qualquer profissão o objetivo concreto dela é o "homem". Participamos de uma sociedade onde cada um tem que contribuir para o bem-estar do ser humano. Esse é o foco. É verdade que muitas vezes nos perdemos e não focamos nessa questão (da função social). O arquiteto em si, ele já tem na veia essa relação com o ser humano. Porque antes de fazer arquitetura, precisamos estudar sociologia, antropologia, história. Não dá pra você sentar na frente de uma prancheta para desenhar, se você não conhecer sociologia, antropologia, história, as relações sociais, a relação com as pessoas. E é por isso que eu acho que não se vê um movimento social onde não tenha um grupo de arquitetos envolvido. Isso no mundo. Me parece que isso é um fato. A segunda questão é: quando pegamos os parâmetros da Organização das Nações Unidas — ONU (1) pra verificar a qualidade de vida dos países — o bem-estar humano — você verá que o nosso comprometimento é diretamente ligado a esses ... A ONU tem dez parâmetros, cinco deles são diretamente ligados a nossa profissão. É energia para cozinhar, a água, a moradia... Isso para avaliar a qualidade de vida do ser humano, Índice de Desenvolvimento Humano — IDH etc. Então, eu costumo dizer que nós somos responsáveis pela qualidade de vida do ser humano. Ponto. Simples assim.
Quando falamos: “nós precisamos cuidar da saúde nas periferias”. Isso, geralmente, é associado em curar a pessoa. Mas está muito claro que nós temos que curar a casa da pessoa, senão não curamos a pessoa. Em seguida, falamos: “não, nós vamos curar a casa da pessoa”. E aí, também percebemos que temos que curar o espaço onde essa casa está localizada. Nós estamos falando de arquitetura e urbanismo.
Tiveram algumas pessoas que perceberam isso que estou falando. Juscelino Kubitschek percebeu isso. Se Juscelino estivesse vivo, estaríamos fazendo assistência técnica no Brasil inteiro. Não teria esse problema no Brasil… Eu tenho certeza disso. Você acha que ele iria acabar com déficit? Eu afirmo que sim! Ele iria acabar com déficit. Porque o déficit é uma decisão política. Se tivesse decisão política concreta, o déficit brasileiro acabaria, sem dúvida, em oito anos. Eles quase me batem quando eu falo que nós não precisamos construir nenhuma casa. Me dizem: “Gilson, mas não fale isso”. É verdade! Nós não precisamos construir uma casa para resolver o déficit habitacional no Brasil. O que nós temos que brigar é pelo direito à moradia. Que é totalmente diferente do direito à propriedade privada da moradia. Nós não temos que lutar pelo direito à propriedade privada da moradia. Eles dizem: “ah, mas é um sonho a pessoa querer a casa própria”. Esse sonho, nem verdadeiro é.
Você tem a solução da questão da habitação, numa rapidez enorme, dependendo da vontade política. Agora, ainda que não houver vontade política, essa pressão social tão grande vai se resolver por si só. A assistência técnica será, sem dúvida, a pauta do mundo, muito em breve. Lógico que ela nasceu no Brasil, na Índia, na África. Mas, é uma pauta mundial. Não é uma pauta só do Brasil.
E isso nós temos que mostrar no nosso Congresso Mundial [de Arquitetos], no Rio de Janeiro; o UIA 2020 (2). A assistência técnica foi a pauta principal deste congresso aqui em Porto Alegre por questões óbvias. Qual a realidade do nosso país hoje? Eu acredito que esse Congresso foi um pontapé para nos fazer evoluir e fazer com que a função social do arquiteto seja uma realidade. Uma realidade, eu digo, sempre foi. Nós não estamos inventando a roda. Eu costumo dizer que é uma corrida de bastão, onde o Clóvis, uma quantidade de pessoas, eu, estamos jogando pra frente.
Em Brasília já tem um grupo enorme de pessoas trabalhando na Codhab. Tem pelo menos seis garotos, comigo, que hoje estão pelo Brasil inteiro falando do trabalho que realizamos. E eu costumo dizer — e estamos conseguindo fazer isso — que o mais importante não é falarmos sobre o trabalho. Nós temos que viver o trabalho. Talvez seja importante também aprofundarmos isso. Pois nós o tratamos com muita superficialidade. E isso é um problema. Nós temos que aprofundar. Lá em Brasília eu falava: “olha, nós temos que ter imersão. Nós temos que estar na periferia. Se [o projeto] é no Sol Nascente, nós temos que ficar lá dentro do Sol Nascente. Não é trazer um projeto para Sede. Nós temos que estar no Sol Nascente. Se é no Pôr do Sol, nós temos que estar no Pôr do Sol”. Porque a solução do Sol Nascente é diferente da solução do Pôr do Sol. Porque os dois estão encostados, mas as pessoas são diferentes, as comunidades são diferentes. Se não, poderíamos mandar o seu João no médico e aí ele pegava a receita, trazia pra comunidade e o seu Pedro usava a receita dele. Não é assim. O médico tem que pegar as pessoas, olhar as pessoas, tem que conversar com as pessoas. O arquiteto é a mesma coisa, não tem diferença. Nós temos que dar a resposta para as pessoas. Aquele ser humano precisa de uma resposta diferente do outro ser humano. A realidade dele é diferente da realidade do outro. E as pessoas dizem: “não, então esse negócio vai ficar muito caro”. Será que o Sistema Único de Saúde — SUS é tão caro assim? Será que a defensoria pública é tão cara assim?
LFRN/NDA: Temos visto muitos grupos de Athis buscando construir metodologias de processo participativo. Existe uma diferença entre processo participativo e projeto participativo? Como foi a participação da população nos anos em que você esteve à frente da Codhab?
GP: Eu acho que a sua pergunta é essencial. Essencial. Veja bem, não dá pra eu criar um processo participativo, se esse processo participativo não nascer da própria comunidade. Cada comunidade tem uma maneira diferente de colocar as suas necessidades. Eu estou falando de comunidade da periferia, pobre. A comunidade do Rio Grande do Sul coloca suas necessidades diferente do Ceará, diferente da Amazônia, diferente da Bahia. É diferente. Porque são seres diferentes.
A participação deles tem que ser diária. Todo dia. O posto de assistência técnica tem que estar lá. O hospital não fica lá? O posto de saúde não fica lá? Então? Tem que ter um posto de assistência técnica lá. A participação deles tem que ser diária. Não pode ser “espasmos”, você entendeu? Tem que ser diária. “Ah, mas nós precisamos de uma consciência”. Gente, o problema político tem nos mais pobres e nos mais ricos! Precisamos ter consciência? Temos. Mas se nós não tivermos consciência da base, nós vamos continuar votando em quem nós estamos votando. Nós temos que nos questionar quando falamos em participação. Participação é participação diária. É um processo. Processo difícil, demorado. Mas, de consciência coletiva, que faz com que as coisas mudem.
E nós temos que criar essa participação, mas temos que tomar cuidado para não fazermos "espasmos" de participação e achar que isso... veja bem, eu não estou anulando. Eu fui pra praça, para o Diretas Já, eu fui pra praça pra tirar o Collor. Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Nós temos que buscar uma participação muito mais séria. Nós precisamos criar cidadania. E voluntariado é uma coisa importantíssima. “Ah, mas o voluntariado trabalha de graça? Não pode trabalhar de graça”. Gente, país que não tem voluntariado não avança. O país dele não avança. Não estou falando de voluntariado de igreja, não. Não é isso. Estou falando de voluntariado, de cidadania. Canadá tem um número de voluntários que é estúpido. A maioria dos aposentados vão ser voluntários. No início, as crianças já aprendem voluntariado. O cara da universidade, ele tem que apresentar uma quantidade de horas enorme de voluntariado. Vamos construir uma casa pelo Habitat for Humanity, vamos colocar a mão na massa... e junto com você está aquele monte de engenheiro voluntário das universidades. Aí você aprende. Por que o cara aposenta e vai fazer voluntariado? Porque ele nasceu percebendo a necessidade daquele voluntariado. Então a cidadania acontece de uma maneira totalmente diferente. E aí, quando tem eleição, do primeiro-ministro por exemplo, ninguém está muito preocupado com ela não. Porque o que manda é o dia a dia. Eu estou falando que isso acontece no Canadá, mas eu quero trazer pro Brasil. Maringá, no Paraná, o prefeito ele entra lá e sai bonitinho lá no final. Porque se pisar fora da mosca eles tiram ele.
Nós temos que ter mais participação e nós precisamos acabar com essa coisa de ter um salvador da pátria. O salvador da pátria não existe. O salvador da pátria é cada cidadão.
notas
1
Índice de Pobreza Multidimensional — IPM, calculado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento — PNUD através do uso de dez indicadores: 1. Taxa de mortalidade infantil e 2. Nutrição. Para a dimensão da educação, os indicadores: 3. Anos de escolaridade e 4. Número de crianças matriculadas. Finalmente, para a dimensão do padrão de vida, concorrem seis indicadores: 5. O acesso a eletricidade; 6. O acesso à água potável limpa; 7. O acesso a saneamento apropriado; 8. O acesso a combustível para cozinhar; 9. O acesso a uma casa com pavimento de terra; 10. Não tendo carro, a propriedade, no máximo, de dois dos seguintes bens: bicicleta, mota, rádio, frigorífico, telefone e televisão.
2
Devido a pandemia do novo Covid-19, o UIA2020 foi adiado para o ano 2021.