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português
O texto apresenta parte da história do povo Kaingang sobrepondo-a à história da colonização e das estradas de ferro no Centro-Oeste paulista. Empresta os eixos corpos e memória da 13ª BIA SP para discutir um equilíbrio de histórias.
english
The text presents part of the history of the Kaingang people, superimposing it on the history of colonization and railways in the Center-West of São Paulo. It borrows the axes bodies and memory of the 13ª BIA SP to discuss a balance of stories.
español
El texto presenta parte de la historia del pueblo Kaingang, superponiéndola a la historia de la colonización y los ferrocarriles en el Centro-Oeste de São Paulo. Toma prestados los ejes de la 13ª BIA SP para discutir un equilibrio de historias.
MORAIS, Lívia Zanelli de. Por um equilíbrio de histórias. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 257.01, Vitruvius, dez. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.257/8341>.
Escrevo da terra ancestral destituída dos Kaingang, de onde escuto o trem passar. Sob o solo da Boca do Sertão corre sangue indígena e, para além dos corpos, a memória dos povos desta terra segue enterrada há mais de um século. No que pese a importância do Complexo Ferroviário de Bauru, maior entroncamento férreo da América do Sul (Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, Estrada de Ferro Sorocabana e a Companhia Paulista de Estradas de Ferro), bastante estudado em pesquisas sobre patrimônio ferroviário no interior paulista, há de se escancarar o apagamento da história dos povos nativos na região. O texto do processo de tombamento deste Complexo ilustra o desequilíbrio de histórias (1) que segue vigente em diferentes regiões do território nacional:
“A Efnob foi ferrovia que teve como objetivo geopolítico a abertura e conexão de territórios, ao romper o padrão cata-café de muitas ferrovias paulistas; atuar como ferrovia povoadora e fundar dezenas de cidades nos Estados de São Paulo e atual Mato Grosso do Sul; abrir propriedades rurais e dar base a companhias de comércio de terras. A articulação de três companhias ferroviárias de grande relevância sintetiza, de maneira exemplar, a força da intervenção da ferrovia, em seu período áureo, no espaço e na dinâmica urbana [...]. O Complexo Ferroviário reúne e representa assim a execução de projetos públicos e privados definidores de territorialidades em São Paulo e no Brasil, expressões de uma cultura dominante até meados do século 20” (2).
No início do século 20, expedições exploratórias eram realizadas pela Comissão Geográfica e Geológica do Estado de São Paulo para mapeamento da bacia hidrográfica do Oeste paulista, especialmente rios Paraná, Grande, Tietê, Aguapeí/Feio e do Peixe. Este levantamento também buscava compreender as áreas próximas aos vales destes rios e foi base para o processo posterior de ocupação pelas frentes colonizadoras. No entanto, estas mesmas áreas conformavam o território Kaingang, de fundamental importância para o modo de vida nômade deste povo caracterizado pela implantação de acampamentos temporários, caça, pesca e coleta. Tal nomadismo foi reforçado com o avanço da colonização como estratégia de defesa de suas vidas e cultura e para sobrevivência, já que os costumeiros recursos passaram a se esgotar cada vez mais rápido. De acordo com Silvia Helena Simões Borelli (3), a exploração da bacia hidrográfica do Centro-Oeste paulista foi um dos pontos centrais para a expansão cafeeira e construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil.
Os Kaingang estão na região, de acordo com levantamentos com datação dos restos de cerâmica por eles elaborada, pelo menos desde o século 15 (4), circulando entre a grande área entre os rios Tietê e Paranapanema e estabelecendo seus aldeamentos nas proximidades dos rios Aguapeí/Feio e do Peixe. Aqui, é importante destacar a relação cultura e território: a grande mobilidade deste povo definia a permanência e posse ancestral Kaingang.
As três ferrovias que se encontram em Bauru se expandem para o oeste cortando território Kaingang: Noroeste do Brasil ― Efnob, entre rios Tietê e Aguapeí/Feio; Companhia Paulista entre os rios Aguapeí/Feio e do Peixe; Sorocabana entre os rios do Peixe e Paranapanema. A Efnob foi construída dentro de um contexto de integração nacional e de enaltecimento das ferrovias como meio de transporte e comunicação. É o complexo ferroviário, por vezes, implantado aparentemente desarticulado das áreas de colonização (em um processo de exploração de terras desconhecidas e de unificação dos territórios), que consolidará a ocupação pelos não índios (5).
Com o conflito entre o povo Kaingang e os não índios agravados a partir de 1905 com a implantação da Efnob, a construtora da ferrovia, de propriedade do engenheiro Machado de Mello ― nome da praça em frente à estação central de Bauru e que, até hoje, acomoda sua estátua ― apelou para o serviço dos “bugreiros” para eliminar a resistência do povo nativo que defendia seu próprio território, tudo em nome do progresso. Em 1908, o aumento da violência era tamanha que já repercutia no exterior, no entanto, os veículos de comunicação e políticos bauruenses, sob controle da elite latifundiária, entre eles Manoel Bento da Cruz, justificavam as medidas também em “nome do progresso” (6).
Assim como Machado de Mello, Manuel Bento da Cruz (também homenageado, dando nome à uma rua na área central de Bauru) tinha grande interesse na pacificação do povo Kaingang. De família rica, trabalhou como advogado de pequenos proprietários de terra e recebia como pagamento as melhores glebas. Em 1905, já com muitas propriedades no Noroeste do Estado de São Paulo, negocia o remanejamento do traçado da Efnob e estações de modo a privilegiar suas terras (7). Em 1912, funda uma das maiores empresas de colonização paulista, a Companhia de Terras, Madeira e Colonização de São Paulo ― parte de um violento processo de apropriação de terras públicas, sem garantias jurídicas claras (8). Com pretensões políticas e forte influência na região, é eleito vereador e prefeito de Bauru.
É neste contexto que acontece a rápida e violenta desarticulação interna dos Kaingang. Estima-se que cerca de 10 mil índios habitavam a região até a segunda metade do século 19, após a pacificação, em 1912, eram quinhentos nativos. Em 1917, após os últimos focos de resistência indígena no Estado, a população contava menos de duzentos indivíduos, distribuídos em três reservas que representam uma parcela mínima do território original Kaingang (9).
Para além do quase extermínio, os deslocamentos forçados e remoções violentas desarticularam o grupo de modo político e social. Ainda, as limitações impostas pela vida em reserva, aniquilando sua livre circulação, modificará, para sempre, a relação dos nativos com o território. As reservas, cercadas e afetadas pelas grandes monoculturas ― paisagens operacionais de impactos socioambientais desastrosos (10), não são suficientes para produzir alimentos para todos os assentados, assim, muitos dos Kaingang tornaram-se trabalhadores rurais das fazendas vizinhas ― o violento legado da pacificação prolonga-se no tempo, espaço e modos de vida impostos.
Mesmo que não contada, a história dos Kaingang é a história da colonização do Centro-Oeste paulista (e do Brasil, de modo geral). Priorizando aspectos políticos na lógica da unificação e civilização do território brasileiro, o traçado da ferrovia foi definido sem considerar os povos originários que aqui viviam, de modo que Estado e iniciativa privada desprezaram direitos indígenas dentro de um processo que conformou privilégios e padrões de propriedade da terra.
Com o Estado legitimando e se abstendo de reparar as consequências destas ações, fica clara a intenção do apagamento já nas falas dos colonizadores registradas nos relatórios das expedições (11) e nos documentos da época, como o mapa do Estado de São Paulo de 1929 que mostrava os municípios e ferrovias desconsiderando qualquer lembrança dos povos nativos, mesmo nas áreas vazias e de ocupação mais tardia, como a Alta Paulista. Atravessada pelo ramal oeste da Companhia Paulista de Estradas (concluído em 1962, na cidade de Panorama), esta região é formada por várias cidades fundadas após 1930 entre os rios Aguapeí/Feio e do Peixe, área tida como de aldeamento Kaingang e que, portanto, devia abrigar seus lugares sagrados. Conforme John Brian Harley (12), não existe espaço vazio em um mapa. O mapa tem seu “inconsciente cartográfico”, termo cunhado pelo geógrafo para aquilo que é reprimido, obstruído e colocado na periferia.
Ainda sem um trabalho de arqueologia que a resgate, a paisagem da terra ancestral Kaingang e toda memória do seu povo segue desconsiderada na história do Centro-Oeste paulista. Hoje, quando o patrimônio histórico em Bauru e região é debatido, ainda tem destaque primordial, por vezes, com viés colonial, o patrimônio arquitetônico ferroviário ― não há, portanto, o reconhecimento do patrimônio cultural material ou imaterial do povo Kaingang pelo Instituto Histórico e Artístico Nacional ― Iphan como há do Complexo Ferroviário.
Em 2020, a prefeitura municipal de Bauru anunciou a restauração da Estação Ferroviária Central, hoje desocupada e em estado de abandono. Enquanto o ferroviário se mantém no imaginário bauruense, ainda que aos trancos e barrancos, muito pouco da história Kaingang é exposta e apenas por meio de poucas fotos e artefatos no Museu Ferroviário Regional de Bauru (13). Hoje, o museu conta com uma pequena praça interna batizada de Praça Kaingang ― um contraponto ainda muito reduzido diante da praça Machado de Mello, localizado próximo ao museu.
Diante da breve história narrada sobre os Kaingang, é necessário considerar: uma revisão que force o reexame de hipóteses transformadas em dogmas; o alargamento da ideia de patrimônio histórico; ações além-museus de reparação para o equilíbrio de histórias. Para este equilíbrio de histórias, a construção de um mundo menos desigual passa pela força da narrativa. Um equilíbrio de histórias, em nome do progresso.
notas
1
Em contraponto ao equilíbrio de histórias, de Chinua Achebe em: ACHEBE, Chinua. Home and exile. New York, Oxford University Press, 2000.
2
Número do Processo: 30367/92. Resolução de Tombamento: Resolução de 22 mar. 2018. Publicação do Diário Oficial, Poder Executivo, 24 mar. 18, p. 60-61.
3
BORELLI, Silvia Helena Simões. Os Kaingang no Estado de São Paulo: constantes históricas e violência deliberada. In: COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. Índios no Estado de São Paulo: resistência e transfiguração. São Paulo, Yankatu Editora, 1984.
4
FERNANDES, Edson. Os Kaingang em Bauru ― com prof. Edson Fernandes. YouTube, San Bruno, 17 mai. 2021 <https://bit.ly/3lOg8p6>.
5
BORELLI, Silvia Helena Simões. Os Kaingang no Estado de São Paulo: constantes históricas e violência deliberada. In COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO. Índios no Estado de São Paulo: resistência e transfiguração. São Paulo, Yankatu, 1984.
6
FERRARI, Rodrigo. Há 100 anos, índios lutavam por Bauru. Jornal da Cidade, Bauru, 15 mar. 2009 <https://bit.ly/3EH0GlU>.
7
MARTINS, Orentino. Apontamentos biográficos. Cel. Manuel Bento da Cruz. 1ª edição. Araçatuba/São Paulo, Norograf/Tipografia Noroestina, 1968, p. 23.
8
SALLUM JR, Brasilio. Capitalismo e cafeicultura: Oeste Paulista, 1888-1930. São Paulo, Duas Cidades, 1982, p. 19.
9
Dados de Hermann von Ihering em FERRARI, Rodrigo. Op. cit.
10
Paisagem não natural na urbanização estendida que dá suporte à urbanização concentrada e integrando o tecido urbano, parte do processo de degradação da natureza em grandes escalas, conforme MORAIS, Lívia Paula Zanelli. Investigação como prática: think thanks e os projetos de arquitetura e urbanismo para o sul plural. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2020, p. 67.
11
Em GHIRARDELLO, Nilson. À beira da linha: formações urbanas da Noroeste Paulista [online]. São Paulo, Editora Unesp, 2002.
12
HARLEY, John Brian. The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography. Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 2001, p. 71.
13
A partir de uma iniciativa de ex-ferroviários, o museu foi fundado em 1989 para abrigar pinturas, fotografias, documentos textuais, peças originais, equipamentos, ferramentas e maquetes.
sobre a autora
Lívia Zanelli de Morais é doutora (FAU USP, 2020); mestre (IAU USP, 2015) e arquiteta e urbanista (FAU USP, 2005). Pesquisadora do grupo Pensamento Crítico e Cidade Contemporânea, desenvolve estudos na área de Arquitetura e Urbanismo, tendo publicações sobre os seguintes temas: produção de arquitetura e urbanismo contemporâneos, teoria e crítica de arquitetura e urbanismo, projetos experimentais, habitação multifamiliar. Lecionou na Universidade do Sagrado Coração e trabalhou em escritórios de arquitetura, entre eles o Bjarke Ingels Group.
preâmbulo
O presente artigo faz parte de Preâmbulo, chamada aberta proposta pelo IABsp e portal Vitruvius como ação para alavancar a discussão em torno da 13ª edição da Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, prevista para 2022. As colaborações para as revistas Arquitextos, Entrevista, Minha Cidade, Arquiteturismo, Resenhas Online e para a seção Rabiscos devem abordar o tema geral da bienal – a “Reconstrução” – e seus cinco eixos temáticos: democracia, corpos, memória, informação e ecologia. O conjunto de colaborações formará a Biblioteca Preâmbulo, a ser disponibilizada no portal Vitruvius. A equipe responsável pelo Preâmbulo é formada por Sabrina Fontenelle, Mariana Wilderom, Danilo Hideki e Karina Silva (IABsp); Abilio Guerra, Jennifer Cabral e Rafael Migliatti (portal Vitruvius).