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português
Considerações para repensar a configuração dos espaços públicos na cidade de São Paulo no pós pandemia diante dos impactos vividos desde março de 2020, abordando os conflitos pré-existentes e recentes na sua forma, uso e apropriação.
english
Considerations to rethink the configuration of public spaces in the city of São Paulo in the post pandemic due to the impacts experienced since March 2020, addressing the pre-existing and recent conflicts in its form, use and appropriation.
español
Consideraciones para repensar la configuración de los espacios en la ciudad de São Paulo en lo periodo pospandémico en vista de los impactos experimentados desde marzo de 2020, abordando los conflictos en su forma, uso y apropiación.
ROMEU, Natália Campanelli. Considerações para repensar os espaços públicos no pós-pandemia. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 257.06, Vitruvius, dez. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.257/8349>.
Os espaços públicos entraram, mais uma vez, na discussão do contexto das cidades durante a pandemia da Covid-19. Conforme foram retomadas as atividades após as medidas de isolamento por conta do coronavírus, houve maior procura pelos mesmos e maior desejo da população em (re)ocupar os espaços públicos. Em contrapartida o setor imobiliário apresentou crescimento expressivo no mesmo período. Ambos dados são relevantes para o contexto urbano contemporâneo, na medida em que interferem na construção da cidade, além de colocar em pauta os anseios dos habitantes em conflito com questões econômicas e com o papel do Estado.
Antes da pandemia iniciar em março de 2020, diversas discussões acerca do tema dos espaços públicos já eram amplamente abordadas. Além disso, para compreender como tais espaços encontram-se no contexto urbano, é preciso analisar as ações do Estado e as influências da lógica neoliberal, que consequentemente interferem na sua configuração, nos limites de sua construção, nas suas formas urbanísticas, e ainda, indiretamente, determinam apropriação dos mesmos. O resultado proveniente dessas ações, juntamente com o processo histórico de conformação das cidades, tem como consequência diversas problemáticas, desde a deterioração dos espaços existentes, como a supressão dos mesmos em prol de espaços de privados. Com isso, o crescimento do setor imobiliário impressiona diante do contexto em que a pandemia prejudicou diversos setores da economia mundial. Segundo dados apontados pelo G1 (1), a cidade de São Paulo apresentou o melhor mês dos últimos dezessete anos tanto na construção de novas unidades habitacionais quanto no número de vendas, com 77,4/% de lançamentos de imóveis residenciais na capital paulistana.
Entretanto, a pandemia da Covid-19, ao restringir o uso constante dos espaços da cidade nos períodos de maiores restrições, contribuiu para que a sociedade urbana expressasse maior desejo de uso desses espaços após medidas restritivas. Ao mesmo tempo, o isolamento social para conter a disseminação do vírus, colocou em questão a qualidade dos espaços habitacionais diante das necessidades dos seus habitantes, que culminou em procura por novas moradias, favorecendo o setor imobiliário, além também das questões econômicas como a baixa da taxa Selic que permitiram crescimento do mesmo. Ou seja, a pandemia intensificou a complexidade dos fatores que envolvem os espaços públicos e o ampliou a necessidade de discutir os conflitos acerca dos mesmos: como a construção da cidade vai se lidar com os interesses do Estado e da economia frente aos desejos dos habitantes das cidades pós pandemia?
A organização do SampaPé junto com o coletivo Metrópole 1:1 apresentaram duas pesquisas (2) realizadas em 2020 com dados muito relevantes sobre a ocupação dos espaços públicos durante a pandemia, considerando o período de maior isolamento, em que as medidas adotadas pelo de Estado de São Paulo estavam mais rígidas quanto à circulação de pessoas e à realização de algumas atividades na cidade. O desejo de “ocupar os espaços públicos para socializar e confraternizar”, “ir a eventos culturais” e “passear a pé” foram as atividades mais votadas pelos participantes que contemplaram a pesquisa. Além disso, a pesquisa também abordou a questão referente à necessidade de melhorias nos espaços públicos, desde mais arborização das ruas para 75,6% dos entrevistados, 68,8% são favoráveis à “criação de mais praças e manutenção das existentes”, 64,9% “ampliação de calçadas sem obstáculos para caminhar”, entre outros desejos como “criação de mais espaços para sentar nas ruas e calçadas”, “melhorias nas condições de acessibilidade dos espaços públicos”. Assim, os resultados revelados pela pesquisa enfatizam a importância da discussão dos espaços públicos, principalmente por apontar problemáticas referentes à estrutura, à configuração e ao desenho desses espaços.
A relação entre os números da pesquisa citada e o crescimento do setor imobiliário é paradoxal, na medida em que as construtoras tem forte atuação na construção da cidade, na produção arquitetônica habitacional e consequentemente no estilo de vida das pessoas. Paralelamente a esse processo, a influência da economia neoliberal consolida ainda mais a presença do capital privado na escala urbana. Assim, é evidente o conflito entre os interesses da população, o Estado e a economia neoliberal.
Os conflitos entre o Estado e a economia neoliberal na cidade
Os conflitos resultantes entre o Estado e a economia neoliberal são anteriores à pandemia, sendo que o mercado imobiliário representa a economia neoliberal. O processo transformador da ação do capital que se desencadeia na cidade de São Paulo, também é detectado em outras cidades mundiais, visto que essa economia também é vigente. Entretanto, é claro que a capital paulistana apresenta particularidades, assim serão abordados os conflitos decorrentes dessa ação e o posicionamento do Estado diante dessa problemática no âmbito urbano.
Na obra Comum, ensaios sobre a revolução no século 21 (3) dos autores Dardot e Laval, os movimentos que surgem como resistência ao avanço da apropriação privada em todas as esferas da sociedade, da cultura e da vida são discutidos através do resgate do comum ― os espaços públicos são englobados pela definição dos autores. Ainda, colocam como uma das questões centrais a influência do sistema capitalista (ilimitado), referindo-se principalmente à lógica neoliberal a partir dos anos 1980, que priorizou o domínio de grupos econômicos, classes sociais e castas políticas. Além disso, ressaltam como o Estado tem seu poder prejudicado pelos próprios poderes econômicos que eles reforçam e defendem. Dessa forma, apresentam algumas transformações do processo da economia neoliberal:
“Disso resultou um novo sistema de normas que se apropria das atividades de trabalho, dos comportamentos e das próprias mentes. Esse novo sistema estabelece uma concorrência generalizada, regula a relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros segundo a lógica da superação e do desempenho infinito. Essa norma da concorrência não nasce espontaneamente em cada um de nós como produto natural biológico, é efeito de uma política deliberada. Com o auxílio diligente do Estado, a acumulação ilimitada do capital comanda de maneira cada vez mais imperativa e veloz a transformação das sociedades, das relações sociais e da subjetividade. Estamos na época do cosmocapitalismo, no qual, muito além da esfera do trabalho, das instituições, as atividades, os tempos de vida são submetidos a uma lógica normativa geral que os remodela e reorienta conforme os ritmos e objetivos da acumulação do capital. É esse sistema de normas que hoje alimenta a guerra econômica generalizada, que sustenta o poder finança de mercado, que gera as desigualdades crescentes e a vulnerabilidade social da maioria, e acelera nossa saída da democracia” (4).
A atuação da economia é reproduzida também sobre os espaços da cidade, com isso justifica-se o avanço da esfera privada sobre a esfera pública. Além disso, esse processo é acentuado pelo posicionamento do Estado, que muda de forma e função de acordo com a competição mundial, segundo Dardot e Laval. Entretanto, ao invés de cumprir o papel de balancear os efeitos do capitalismo contra a sociedade, o Estado concede às pressões advindas dos processos da economia.
“Como Marx viu desde cedo e como Polanyi repetirá, há muito tempo o Estado é um agente ativo na construção dos mercados. A nova onda de apropriação das riquezas é, mais do que nunca, obra conjunta do poder público e das forças privadas, em particular das grandes empresas multinacionais em todo o mundo. Aliás, é isso que explica a recomposição das classes dominantes, semiprivadas e semipúblicas, nacionais e ao mesmo tempo mundiais, cujos membros ocupam ampla gama de posições de poder no aparelho de Estado, na mídia e no sistema econômico, monopolizam postos-chave tanto nos partidos de direita tradicional como na esquerda “moderna”, praticam intensivamente a revolving door (porta giratória) entre setor mercantil e função pública, ao mesmo tempo que se desenvolvem uma verdadeira consciência de seus interesses comuns, sob disfarce de “realismo” econômico e seriedade de gestão” (5).
É nesse contexto que Dardot e Laval trazem a discussão do comum, que é resgatado através dos movimentos que se opõe tanto à inércia do Estado quanto à ordem capitalista. Apesar das representações filosóficas, jurídica e teológica, o comum (koinón) é abordado como um princípio político.
“O movimento dos comuns é uma resposta a um dos aspectos mais evidentes do neoliberalismo: a “pilhagem” realizada pelo Estado e pelos oligopólios privados daquilo que até então era de domínio público, do Estado social, ou estava sob controle das comunidades locais. A imensa transferência de bens e capitais do Estado para o setor privado, em que consistiram as “terapias de choque” e as transições para a economia de mercado” dos antigos países comunistas a partir do fim dos anos 1980 e durante os anos 1990, foi um dos aspectos mais marcantes dessa grande apropriação” (6).
Na cidade de São Paulo a presença do capital privado foi intensificada pelo processo de urbanização que a cidade vivenciou na segunda metade do século 20 conforme discorre Queiroga. Entretanto, a manutenção dos privilégios para os detentores de capital por parte do Estado permaneceu. Dentre os fenômenos da urbanização difusa, a fragmentação do tecido urbano resultante da verticalização em condomínios de edifícios que se isolam do seu entorno e a produção dos tecidos periféricos pela iniciativa estatal, privada ou popular se encontram presentes no território. O espraiamento urbano marca a urbanização brasileira contemporânea a partir de 1970.
“Com a consolidação do modelo de circulação ― urbana e regional ― baseado, fundamentalmente, no transporte sobre pneus, propiciou-se expansão desmedida. Novos empreendimentos ― públicos ou privados ― deixaram glebas intersticiais de caráter especulativo. Várias cidades médias e grandes apresentaram, nas décadas de 1970 e 1980, diminuição de suas densidades intraurbanas, a despeito dos incrementos populacionais. Favoreceu-se o capital imobiliário, onerando o Estado e as populações que dependem de transporte público” (7).
Queiroga destaca o crescimento da desigualdade social e aumento de desemprego que ocorreram durante a democratização e o período liberal da urbanização no Brasil. Com isso, houve um crescimento da violência nos centros urbanos que teve como resposta a criação de condomínios fechados em áreas periféricas das cidades. Esse modelo valoriza a esfera privada, na medida em que enclausura e distancia da convivência da vida cotidiana pública e diminui a sociabilidade entre classes sociais distintas, entre outros fatores.
“Na década de 1970, no período inicial da urbanização contemporânea brasileira, o município de São Paulo aprovou novas leis de zoneamento que limitaram fortemente o aproveitamento dos terrenos. Para a maior parte da cidade, estabeleceu-se coeficientes de aproveitamento ― CAs iguais ou inferiores a 2 e, em poucas áreas, tal coeficiente chegou, no máximo, a 4. Instituíram-se recuos estabelecendo como padrão o edifício isolado. Quanto à questão do uso do solo, protegeram-se os bairros de moradia das elites, determinando uso exclusivamente residencial e baixo CA e criaram-se zonas predominantemente comerciais e de serviços, zonas industriais e mistas. Tratou-se de uma aproximação brasileira ao urbanismo moderno funcionalista, buscando a separação de funções, mas também reforçando a segregação socioespacial e a manutenção dos privilegiados bairros ocupados pela elite” (8).
Além da presença do capital privado na urbanização brasileira, o modelo urbanístico moderno que foi adotado na composição da cidade de São Paulo assim como em muitas outras cidades, é criticado por Lefèbvre ao longo da obra A revolução urbana. O urbanismo moderno, reproduz a lógica industrial através da racionalidade universal, do ângulo reto e linhas retas no tecido urbano, ressaltando que essa imposição se dá através de uma instituição: o Estado. O filósofo questiona o urbanismo por ser a atividade que tenta dominar e submeter à sua ordem o processo de urbanização, assim como a prática urbana.
O resultado do processo de industrialização se deu na organização do tecido urbano em quadras, tendo as funções da cidade dividida por zonas, que permitiu as construções de grandes condomínios verticais, caracterizados por uma ou mais torres, que possuem dentro do espaço remanescente do lote um diversa gama de espaços de lazer voltados para o uso coletivo de seus moradores.
“Dessa forma, deu-se impulso a uma tipologia urbanística híbrida: a quadra tradicional subdividida em lotes e estes ocupados por torres isoladas seguindo pressupostos do modernismo, que “garantia” insolação e ventilação. Paulatinamente, nas grandes e médias cidades brasileiras, a torre isolada, sobretudo de uso residencial, foi se afastando da rua” (9).
Dessa forma, como Queiroga critica em sua tese, cria-se uma pseudoautonomia do morar em relação à cidade, ressaltando que é mais seguro (e tedioso) divertir-se dentro do condomínio que caminhar pelo bairro ― as medidas de isolamento reforçaram essa ideia. Além disso, aponta crescimento econômico do país a partir de 2003 em que a produção imobiliária se expandiu, principalmente depois de 2006, em que houve a abertura de capitais das principais incorporadoras paulistanas, além do fortalecimento de muitas empresas pelo país. O capital financeiro aqueceu o mercado imobiliário e com isso, houve o aumento dos preços dos terrenos na cidade, o que acarretou na pressão do mercado sobre a prefeitura que cedeu a flexibilização de regras para novos empreendimentos.
A transformação dos espaços em produtos que entram na produção global e total, apontada por Lefèvbre, é um processo recente assim como a expansão do mercado imobiliário em São Paulo, apesar da produção do espaço estar presente desde as cidades antigas. Essa extensão da atividade produtiva através da compra e venda do espaço, contribui para o desencadeamento da especulação imobiliária, pois a premissa é atender aos interesses de quem a inventa, a gere e se beneficia dela. Da mesma forma, ocorre a gentrificação de espaços públicos que foram revitalizados, nos quais o aumento dos valores dos terrenos e dos imóveis que os cercam é promovido pela especulação imobiliária.
“Bens de primeira necessidade, como alimentos ou medicamentos, são governados cada vez mais estritamente pela lógica mercantil imposta pelos oligopólios mundiais; cidades, ruas e praças e transportes públicos são transformados em espaços de comércio e publicidade; o acesso às instituições culturais, aos equipamentos esportivos e aos locais de lazer e descanso torna-se cada vez mais difícil em vista das tarifas cada vez mais elevadas que são cobradas dos usuários-clientes; os serviços públicos desde hospitais até escolas, passando por penitenciárias, são construídos e cogeridos por empresas privadas” (10).
A produção do espaço metropolitano reforça e reproduz problemas de desigualdade social, prejudica a apropriação dos espaços públicos e do tempo, incide nas formas de lazer e de consumo e inclusive na subjetividade. Por isso, múltiplos conflitos de interesses podem ser detectados no fenômeno urbano, devido ao choque de uma extensa e complexa reunião de conteúdos. A forma urbana é resultante da simultaneidade por convergir e ser o ponto de encontro de tudo o que vive nela. A prática vivenciada por essa reunião no nível médio (M) proposto por Lefèbvre ou na esfera pública revela tanto a exclusão, como a inclusão ou mesmo atritos dos seus componentes. É neste contexto de ligação da dialética dos conteúdos com a lógica da forma que concentra, que a cidade constrói a essência das relações sociais, mesmo que sua manifestação revele conflitos. Assim, se faz necessário elucidar o surgimento de movimentos contemporâneos como resposta a esses conflitos e que buscam retomar a democracia urbana, contestando os domínios do mercado sobre o espaço urbano.
“Isso quer dizer que o urbano como forma e realidade nada tem de harmonioso. Ele também reúne conflitos. Sem excluir os de classe. Mais que isso, ele só pode concebido como oposição à segregação que tenta acabar com os conflitos separando os elementos no terreno. Segregação que produz uma desagregação da vida mental e social. Para evitar as contradições, para alcançar a harmonia pretendida, um certo urbanismo prefere a desagregação do lado social. O urbano se apresenta, ao contrário, como lugar dos enfrentamentos e das confrontações, unidade das contradições. É nesse sentido que o seu conceito retoma o pensamento dialético (modificado profundamente, é verdade, porque mais vinculado à forma mental e social que aos conteúdos históricos).
O urbano poderia, portanto, ser definido como lugar da expressão dos conflitos, invertendo a separação dos lugares onde a expressão desaparece, onde reina o silêncio, onde se estabelecem os signos de separação. O urbano também poderia ser definido como lugar do desejo, onde o desejo emerge das necessidades, onde ele se concentra, porque se reconhece, onde se reencontram talvez (possivelmente) Eros e Logos” (11).
Ao reunir dentro de sua ordem, a grande cidade dissimula uma desordem essencial, ela é composta por vícios, poluição, doença, envolve a alienação. Reúne multidão e solidão ao mesmo tempo, que segrega, concentra poder e monopoliza a cultura. Lefèvbre descreve a concentração desses aspectos, significados e influências que envolvem o fenômeno urbano a partir da leitura da rua, que é um espaço da esfera pública.
“A favor da rua. Não se trata simplesmente de um lugar de passagem e circulação. A invasão dos automóveis e a pressão dessa indústria, isto é, do lobby do automóvel fazem dele um objeto-piloto do estacionamento, uma obsessão, da circulação um objetivo prioritário, destruidores de toda a vida social e urbana. Aproxima-se o dia em que será preciso limitar os direitos e os poderes do automóvel, não sem dificuldades e destruições. A rua? É o lugar (topia) do encontro, sem o qual não existem outros encontros possíveis nos lugares determinados (cafés, teatros, salas diversas). Esses lugares privilegiados animam a rua e são favorecidos por sua animação, ou então não existem. Na rua, teatro espontâneo, torno-me espetáculo e espectador, às vezes ator. Nela efetua-se o movimento, a mistura, sem os quais não há vida urbana, mas separação, segregação estipulada e imobilizada. Quando se suprimiu a rua (desde Le Corbusier, nos “novos conjuntos”), viu-se as consequências: a extinção da vida, a redução da “cidade” a dormitório, a aberrante funcionalização da existência. A rua contém as funções negligenciadas por Le Corbusier: a função informativa, a função simbólica, a função lúdica. Nela joga-se, nela aprende-se. A rua é desordem? Certamente. Todos os elementos da vida urbana, noutra parte congelados numa ordem imóvel e redundante, liberam-se e afluem-se às ruas e por elas em direção aos centros; aí se encontram, arrancados de seus lugares fixos. Essa desordem vive. Informa. Surpreende. Além disso, essa desordem constrói uma ordem superior” (12).
Ainda, o autor faz uma contraposição da descrição da rua, que poderia remeter à alguma rua da cidade de São Paulo, destacando sua caracterização de vitrine de mercadorias, sua transformação em lugar de troca e valor de troca, e como a rua converteu-se em passagem solitária diante de uma multidão e uma rede de consumo. A transformação contraditória da rua apontada por Lefèbvre, reforça a invasão da esfera privada sob a esfera pública e aponta, ainda, para a perda da liberdade que é inerente à esfera pública. Ou seja, a expansão dos interesses de mercado por todos os espaços da cidade, além da alteração de toda a forma urbana, influencia nos modos de vida e impõe uma realidade.
O homem ao habitar a cidade está em constante contato com os espaços de uso comum, seja na circulação, na permanência, na realização de atividades, em manifestações políticas ou em comemorações festivas. A experiência urbana é decorrente da vivência no cotidiano e é inerente a todos moradores das cidades. Como Queiroga destaca em sua tese de livre-docência o espaço livre urbano é o lócus mais importante da esfera pública geral e política, por ser um bem de uso comum do povo, possibilitando a condição de existência da cidade. Ainda, corrobora a relação de identidade que se estabelece com ela e aponta para relação entre a (des) qualificação do sistema de espaços livres e a decadência ou excelência da vida citadina.
Portanto, é evidente o papel transformador da ação da esfera privada sobre a esfera pública, principalmente quando o processo é intensificado como foi vivenciado na pandemia. Consequentemente há descaracterização dos espaços de livre acesso na cidade, como na escala da rua, onde verifica-se a negação de calçadas cercadas por muros altos de grandes edifícios habitacionais, falta de manutenção do piso e acessibilidade questionável em diversos pontos, assim como a arborização pouco presente em algumas áreas e também a ausência de equipamentos como bancos para descanso. Ao abordar os parques, as praças e corredores verdes, também verifica-se o processo de mercantilização dos espaços públicos com a concessão de gestão, operação e manutenção de equipamentos públicos para a iniciativa privada, como é o caso do Pacaembu e do Ibirapuera. Ou seja, prejudica-se essa relação da vida citadina com o usuário, primeiramente pelo o mesmo estar excluído das decisões referentes aos espaços que usufruem no cotidiano e pelo interesse do capital estar acima dos seus desejos na cidade.
Os desejos dos habitantes paulistanos listados pela pesquisa do SampaPé e Metrópole 1:1 ratificam a necessidade de repensar como o Estado e o mercado imobiliário atuam na cidade. Além disso, expõem a fragilidade diante das problemáticas que o tecido urbano apresenta e alerta para a necessidade de buscar soluções que se aproximem mais do interesse do cidadão.
Conclusão
A pandemia da Covid-19 ao reiterar os processos advindos da mercantilização dos espaços públicos da cidade e dos conflitos entre o mercado imobiliário e o Estado, também representa a possibilidade de exercer na prática as mudanças que se mostram, cada vez, mais urgentes. Assim como transformações de diversos âmbitos da sociedade e da economia foram alcançados pela disseminação do vírus, tem-se um contexto propício para que questões antigas ganhem novas soluções. Os interesses da população devem estar acima do interesse do capital e devem ser priorizados cada vez mais pelo Estado, que não também não deve conceder tanto às pressões econômicas, assim como Dardot e Laval criticam. O desenho urbano também é imprescindível para (re) construir os espaços públicos, assim como Lefèbvre questiona o papel do arquiteto ao definir as formas do urbanismo na composição da cidade, dessa forma, cabe o questionamento de quais estratégias devem ser adotadas pelos profissionais da área para que o espaço seja mais convidativo ao usuário que irá usufruí-lo, que seja capaz de proporcionar melhor qualidade de vida, promovendo identificação com a cidade. Por fim, a transformação do espaço público como bem de uso comum do povo deve ser mais democrática, aproximando o indivíduo da esfera pública e assim estabelecendo uma melhor qualificação da vida citadina através do uso e apropriação desses espaços.
notas
1
Mercado imobiliário da cidade de São Paulo tem melhor maio dos últimos 17 anos, aponta Secovi-SP. G1, São Paulo, 24 jun. 2021 <https://glo.bo/3s2SzfY>.
2
COSTA, Ana Laura; PITOMBO, Fernanda; SABINO, Letícia; UCHÔA, Louise; FARIAS, Douglas; SATO, Bruna; TINI, Bibiana (org.). Relatório da Pesquisa: acesso aos espaços públicos na pandemia. São Paulo, Metrópole 1:1, SampaPé, dez. 2020 <https://bit.ly/3dKk0mo>.
3
DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. Comum, ensaio sobre a revolução no século 20. São Paulo, Boitempo, 2017.
4
Idem, ibidem, p. 12.
5
Idem, ibidem, p. 105.
6
Idem, ibidem, p. 104.
7
QUEIROGA, Eugênio. Dimensões públicas do espaço contemporâneo: resistências e transformações de territórios, paisagens e lugares urbanos brasileiros. Tese de livre docência. São Paulo, FAU USP, 2012, p. 231.
8
Idem, ibidem, p. 237.
9
Idem, ibidem, p. 238.
10
DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. Op. cit., p. 109.
11
LEFÈBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002, p. 160.
12
Idem, ibidem, p. 29-30.
sobre a autora
Natália Campanelli Romeu é arquiteta e urbanista graduada pela FAU Mackenzie, 2013.
preâmbulo
O presente artigo faz parte de Preâmbulo, chamada aberta proposta pelo IABsp e portal Vitruvius como ação para alavancar a discussão em torno da 13ª edição da Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, prevista para 2022. As colaborações para as revistas Arquitextos, Entrevista, Minha Cidade, Arquiteturismo, Resenhas Online e para a seção Rabiscos devem abordar o tema geral da bienal – a “Reconstrução” – e seus cinco eixos temáticos: democracia, corpos, memória, informação e ecologia. O conjunto de colaborações formará a Biblioteca Preâmbulo, a ser disponibilizada no portal Vitruvius. A equipe responsável pelo Preâmbulo é formada por Sabrina Fontenelle, Mariana Wilderom, Danilo Hideki e Karina Silva (IABsp); Abilio Guerra, Jennifer Cabral e Rafael Migliatti (portal Vitruvius).