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português
Em tempos de transições gradativas de via elevada para parque urbano, o texto propõe reflexões sobre o Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, e alguns paradoxos encontrados nas improváveis relações entre território e população.
english
In times of gradual transitions from an elevated road to an urban park, the text proposes reflections on the Elevado Presidente João Goulart, knowed as Minhocão, and some paradoxes found in the unlikely relations between territory and population.
español
En tiempos de transiciones graduales de una vía elevada a un parque urbano, el texto propone reflexiones sobre el Elevado Presidente João Goulart, el Minhocão, y algunas paradojas encontradas en las improbables relaciones entre territorio y población.
ZARPELON, Larissa Francez; LOURO E SILVA, Hugo. Minhocão: espaço suspenso. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 257.04, Vitruvius, dez. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.257/8347>.
O Minhocão, como é conhecido o Elevado Presidente João Goulart, é uma infraestrutura urbana construída na década de 1970, cuja função principal era dar maior fluidez ao tráfego de veículos automotores, especialmente aqueles privados, no eixo Leste e Oeste da cidade de São Paulo. Recentemente, a Lei 16.833/2018 implementou o Parque Minhocão, com o objetivo de transformar a via expressa em parque público e prevê, em um primeiro momento, a desativação gradativa do Elevado João Goulart, com progressiva restrição à circulação de automóveis e, posteriormente, implantação de projeto de intervenção urbana. Atualmente, a circulação de veículos automotores está autorizada de segunda a sexta-feira entre às 7h00min e às 20h00min, estando livre para pedestres nos demais horários.
Tendo em vista esta situação, e antes que o parque seja de fato implementado em sua totalidade, ofertamos algumas provocações que consideram seu estado atual, identificam nele alguns paradoxos e, por fim, interpretam o Minhocão como um espaço suspenso.
A reflexão sobre o Minhocão enquanto intervenção urbana em seu contexto espaço-temporal, foi por nós lida como uma infraestrutura planejada a partir de preceitos do urbanismo moderno e da modernidade no geral, tais como a construção de espaços estáveis a partir do reconhecimento do móvel e autonomia da obra construída com relação ao sítio. A via elevada levou às últimas consequências a sobreposição, já em curso, da circulação rápida de veículos às demais funções do espaço público, desconsiderando, de forma geral, a vida de bairro e os impactos da vida urbana que deviriam sob a estrutura de concreto.
Por outro lado, e apesar de ter sido concebido para ter uma única função, o Minhocão permite o reconhecimento de instabilidades e a incorporação de mutações, enquanto acolhe uma multiplicidade de usos para o qual não foi projetado, constituindo-se como “uma materialidade estável que permite a mobilidade inquietante da contemporaneidade” (1). Como o rizoma deleuze-guattariano (2), a infraestrutura é um território de alianças improváveis, pois que não importa menos como materialidade, ao passo que ganha valor no confronto e nos vínculos que possibilita. Fazer vínculos é uma forma de resistir à brutalidade e à imposição da estrutura. Como na ideia de ritornelo (3), cada vez que seus portões são fechados para os carros, o Minhocão é novamente reterritorializado: um novo começo, intensidades que mudam conforme a repetição, novos liames que perturbam a lógica espacial. O Minhocão pode ser comparado, ainda, ao texto aberto de Barthes (4), o que é privado de sentido único ou significado final: desvela possibilidades e não se cansa de desvelar possibilidades de uma liberdade em processo de conquista. No desenvolvimento desta interpretação, identificamos que o Elevado pode carregar em si três paradoxos.
O primeiro é o de ser uma obra organizadora e opressora em relação às pré-existências, ao passo que, desde sua fundação, foi incubadora de atitudes questionadoras por parte de pessoas que o utilizam, residentes ou trabalhadores do entorno: sua presença maçante, física e simbolicamente, fomentou uma postura ativa dos cidadãos que se relacionam de alguma forma com o Minhocão.
O segundo paradoxo identificado nasce a partir do primeiro e se resume em ser a via elevada, quando está Parque Minhocão, um espaço público propício a encontros, práticas esportivas, ócio, festas, manifestações culturais, artísticas, enquanto, sob esta efemeridade democrática e fértil, seus baixios escondem (ou escancaram) a presença histórica dos excluídos desta democracia. Além de servir de abrigo a pessoas em situação de rua, o Minhocão, em toda a sua extensão, cria áreas de pouca insolação e muita umidade no nível do chão da cidade, áreas eventualmente sem visão do céu, com alta reverberação de ruídos causados por ônibus, motos e automóveis e, de noite, caminhões.
O fato de ser elevada é o terceiro paradoxo da famigerada via. Por um lado, tem a potencialidade de se transformar em uma extensa via para pedestres com 3,4km de extensão, sem cruzamentos ou interrupções. Por outro lado, esta mesma condicionante, faz com que o espaço, mesmo aberto, possa carecer de urbanidade ― que incorpora o inesperado, as diferenças, a mistura, o enfrentamento da realidade, o convívio com diferentes, dando lugar às múltiplas funções do espaço público e as outras tantas situações e possibilidades que estar na rua nos coloca em contato.
Seu tempo de utilização, pelo momento, é pré-definido e seus acessos, condicionadores. Não se pode estar ali por acaso, é preciso querer estar ali. É estar na rua e ao mesmo tempo não estar, pois uma vez dentro, perde-se o contato com o chão, com os excluídos abrigados sob sua estrutura, com sua falta de luz, sua umidade, ruídos e odores.
É, então, por ora suspenso no tempo e no espaço.
Certamente, o Minhocão aberto equilibra algumas tensões sociais, dando vazão ao desejo por espaços abertos na cidade e pontuamos que o Elevado como presença ou função não é uma realidade que está dada: seu processo de significação e ressignificação é constante. Como pontuam também Passos e Eirado:
“O consenso e o senso comum não são tão comuns assim, porque eles se fazem a partir de um ponto de vista que opera na comunidade (coletivo social), anulando as diferenças (ou só incluindo-as através de uma operação comparativa que as destitui de sua singularidade)” (5).
Desta maneira, esperamos que, a partir da implementação do Parque Minhocão, se possa imaginar contaminações possíveis entre este ente suspenso, e o outro, o chão, o avesso, o baixio. Para que, quando Parque, seja espaço público vivo e fértil.
notas
NA ― Este texto foi parcialmente desenvolvido durante a disciplina Urbanismo contemporâneo e espaços públicos, ministrada pelo professor doutor Luiz Guilherme Rivera de Castro e pelo professor doutor Igor Guatelli, junto ao PPGAU Mackenzie, em 2017.
1
MACHADO JÚNIOR, Juscelino Humberto Cunha. Arquitetura do porvir ― o entre, o neutro e o plural. O Percevejo Online, v. 8, n. 1, jan./ jun. 2016, p. 197-213.
2
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 1. Rio de Janeiro, Editora 34, 2000.
3
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. V. 4. Rio de Janeiro, Editora 34, 2012.
4
PASSOS, Eduardo; EIRADO, André do. Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador. In PASSOS, Eduardo. KASTRUP, Virgínia. ESCÓSSIA, Liliana da (org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre, Sulina, 2015.
5
Idem, ibidem.
sobre os autores
Larissa Francez Zarpelon é mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Cursou o Master Paesaggi Straordinari: Paesaggio ― Arte ― Architettura no Politecnico di Milano (2008). Pesquisa espaço público e arquitetura contemporânea latino-americana e atua como docente na Universidade Paulista nas disciplinas de Projeto Arquitetônico, Projeto Urbano-Paisagístico e Trabalho de Conclusão de Curso.
Hugo Louro e Silva é doutor, mestre e graduado em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor convidado nos Programas de Pós-graduação lato sensu da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Nsta última, é coordenador do curso de Empreendimentos Imobiliários.
preâmbulo
O presente artigo faz parte de Preâmbulo, chamada aberta proposta pelo IABsp e portal Vitruvius como ação para alavancar a discussão em torno da 13ª edição da Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, prevista para 2022. As colaborações para as revistas Arquitextos, Entrevista, Minha Cidade, Arquiteturismo, Resenhas Online e para a seção Rabiscos devem abordar o tema geral da bienal – a “Reconstrução” – e seus cinco eixos temáticos: democracia, corpos, memória, informação e ecologia. O conjunto de colaborações formará a Biblioteca Preâmbulo, a ser disponibilizada no portal Vitruvius. A equipe responsável pelo Preâmbulo é formada por Sabrina Fontenelle, Mariana Wilderom, Danilo Hideki e Karina Silva (IABsp); Abilio Guerra, Jennifer Cabral e Rafael Migliatti (portal Vitruvius).