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my city ISSN 1982-9922

abstracts

português
Este ensaio é um convite a dialogar com as tramas urbanas e analisar territórios através do cabelo e da trança. Destacamos histórias que se entrelaçam em meio ao chamado afro-diaspórico de des-embranquecer as cidades.

english
This essay is an invitation to a dialogue with the city’s weave and analyze territories through hair and braid. We highlight stories that interweave in the midst of the afro-diasporic call to de-whiten the cities.

español
Este ensayo es una invitación a dialogar con tramas urbanas y analizar territorios a través del cabello y la trenza. Destacamos historias que se entrelazan en medio del llamado de la afro-diáspora para des-blanquear las ciudades.

how to quote

PEREIRA, Gabriela Leandro; RODRIGUES, Maria Luiza de Barros; LEANDRO, Emmily Caroline; SILVA, Natália Alves da; MAYRINK, Luciana da Silva. Cabeça feita. Nas tramas da cidade. Minha Cidade, São Paulo, ano 22, n. 257.01, Vitruvius, dez. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/22.257/8364>.


Colagem Cabeça Feita
Elaboração Sofia Costa


Te convidamos a dialogar com as tramas de cidade e cruzar territórios através do cabelo e da trança. Como afirma Nilma Lino Gomes, “o cabelo não é um elemento neutro no conjunto corporal. Ele é maleável, visível, possível de alterações e foi transformado, pela cultura, em uma marca de pertencimento étnico/racial”. Ainda segundo Nilma “Para o negro e a negra o cabelo crespo carrega significados culturais, políticos e sociais importantes e específicos que os classificam e os localizam dentro de um grupo étnico/racial”.

Destacamos a relação entre o salão especializado em tranças afro ou a trançadeira que ocupa um espaço público e a cidade. Ambos produzem espaços de fortalecimento para a população negra, sobretudo para as mulheres negras. Como a trama do cabelo e da trança dialoga com o território? O conceito de território de Milton Santos diz que: “O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre os quais ele influi. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que se está falando em território usado, utilizado por uma dada população”.

Madureira, um bairro do Rio de Janeiro evidencia essa relação. Território de grande efervescência cultural negra, está presente em sua história e formação local, a ancestralidade, expressa na atuação das trançadeiras e na afirmação positiva da estética do cabelo afro, influenciada pelo movimento Black is beautiful que surgiu a partir de lutas civis nos Estados Unidos e difundido ao redor do mundo. Uma das pautas levantadas era a elevação da auto-estima negra através de vestimentas e penteado dos cabelos. Madureira e seu entorno possui forte presença do samba, do jongo e no período mais recente do estilo hip hop e do funk. Todas manifestações culturais de resistência negra.

Esses movimentos se expandem para os salões especializados em tranças, galerias de trançadeiras e salões de beleza de cortes masculinos. Do pente garfo à esponja, do corte na régua ao gel, ultrapassam a dimensão estética e adquirem também uma dimensão territorial e política na produção do espaço urbano.

Seguimos com um relato da experiência recente de Luciana Mayrink, integrante da Terra Preta:

“Quando pensei em trançar, me veio rapidamente um lugar, o Shopping dos cabelos no centro do Rio. Na tão conhecida Rua Sete de Setembro o comércio, que antes fora bem diverso, hoje se dedica exclusivamente a venda de cabelos humanos e sintéticos. A abordagem ao passar pela rua é contínua, todos querendo vender produtos e serviços ao melhor preço, no entanto eu já sabia onde ir. Quanto mais adentrava as galerias, mais cores de cabelos me saltam aos olhos e mais retinta ficava a cor da pele das trançadeiras. Procurei aquelas que trançaram meu cabelo da primeira vez, busquei seus sotaques congoleses mas acabei encontrando outros rostos, desta vez vindos da Angola. Entrei no box bem apertado e já havia uma cliente na minha frente. Aguardei ao som de uma música quase indetectável que vinha de outra loja. Ao terminar a outra cabeça, a jovem trançadeira me chamou e eu sentei em frente ao espelho. O local era bem estreito e praticamente trocamos de lugar para nos mover. A mistura de sotaques no ambiente veio junto com o relato das vivências de tantas que cruzam fronteiras geográficas e se encontram naquele mesmo lugar, no centro do Rio”.

A trama urbana feita pelas trançadeiras ultrapassa os limites dos salões de cabeleireiros. Está presente nas escadarias, nas esquinas, nas calçadas, nos espaços públicos e nas casas. A trançadeira que vai até a casa para trançar nos remete a dimensão do cuidado e da troca. A trança é um fio condutor para dialogar sobre a autoestima, ancestralidade e representatividade étnica de mulheres negras. Raísa Muniz, que é geógrafa e trançadeira, nos conta agora um pouco desse trabalho:

“Aprendi a trançar cabelo com minha mãe e minhas tias. Elas sempre trançaram meu cabelo quando eu era criança. Por meu cabelo ser muito crespo e cheio, a intenção era me deixar sempre arrumada. Elas são de Pirajuia, um distrito do Recôncavo Baiano e lá é muito comum as mulheres trançarem os cabelos umas das outras em ocasiões especiais. Eu comecei a traçar profissionalmente em 2016, quando eu precisei deixar algumas atividades para conseguir pegar algumas disciplinas e me formar em geografia e comecei a usar muito a internet tanto para divulgar as fotos das tranças que eu fazia, quanto pra aprender. Comecei a trançar muito o cabelo de amigas, irmãs e mulheres. Isso fez com que eu trabalhasse muito na casa dessas mulheres. É um trabalho relativamente mais confortável do que trabalhar na rua, a gente conversa bastante, principalmente sobre estética negra, sobre questões da vivência da mulher negra. Nesse tempo eu rodei a cidade inteira”.

Conforme diz Raul Lody, em Cabelos de Axé, “cuidar dos cabelos é, antes de tudo, cuidar da cabeça, um espaço profundamente simbólico. É, por extensão, cuidar da pessoa. Pentear os cabelos é um momento ritualizado de vivenciar tudo o que a cabeça representa para a pessoa e para seu grupo”.

Nilma Gomes fala que

“A força simbólica do cabelo para os africanos continua de maneira recriada e ressignificada entre nós, seus descendentes. Ela pode ser vista nas práticas cotidianas e nas intervenções estéticas desenvolvidas pelas cabeleireiras e cabeleireiros étnicos, pelas trançadeiras em domicílio, pela família negra que corta e penteia o cabelo da menina e do menino. Pode ser vista também nas tranças, nos dreads e penteados usados pela juventude negra. Se no processo da escravidão o negro não encontrava no seu cotidiano um lugar, quer fosse público ou privado, para celebrar o cabelo como se fazia na África, no mundo contemporâneo alguns espaços foram construídos para atender a essa prática cultural. Os salões étnicos espalhados pelas mais diferentes cidades e estados brasileiros apresentam-se como um dos espaços em que essa celebração é possível”.

Nossa trama se desloca para São Paulo, onde o antropólogo Hélio Menezes, dialogou em um de seus trabalhos recentes com um reduto da cultura afro na cidade de São Paulo: a Galeria Presidente, mais conhecida como Galeria do Reggae, localizada no bairro da República. Lá existem cabeleireiros em todos os pisos do edifício e para atrair clientes para suas lojas, mulheres negras se articulam na calçada para convidar os passantes a cuidarem de seus cabelos. Mais do que a galeria, o bairro da República é também um território negro que recebe imigrantes africanos e haitianos. Conversamos um pouco com Hélio em outubro de 2019 sobre esse trabalho que foi realizado para a 12ª Bienal de Arquitetura:

“O trabalho de pesquisa para a bienal de arquitetura que se chamou Nova República, foi um trabalho em parceria com um escritório da África do Sul, chamado Wolff. Foram 4 meses de pesquisa, sobretudo sobre a relação entre o Sesc 24 de Maio e a Galeria do Reggae, que é um prédio histórico no centro de São Paulo, que ao menos desde os anos 1970 tem uma ocupação muito sistemática de pessoas negras. A princípio uma população preta de São Paulo e hoje em dia, brasileira e de imigrantes africanos e haitianos. É, portanto, um lugar de identidade negra muito forte. Se na Galeria nos anos 1970 já existia forte a presença de salão de beleza, eles eram minorias porque a maior parte das lojas eram voltadas à produção musical e à música, sobretudo música black. Mas com o passar dos anos, a Galeria se tornou uma referência de fato na indústria capilar e a oferecer serviços de cabelo e também loja de produtos voltados a essa indústria, de modo a se tornar referência nessa questão, e um centro de cultura capilar negra muito grande no centro de São Paulo. Acontece que, nesses meses de pesquisa — em conversa com os frequentadores, lojistas da Galeria ― é que embora que seja um lugar muito histórico e muito importante das culturas negras, é um lugar bastante marginalizado. O prédio não passa por reformas estruturais há bastante tempo, acontece perseguição policial intensa e contínua, sobretudo nos últimos anos com o aumento do fluxo de imigrantes, de modo que é um lugar bastante vigiado. Outra mudança possível de observar nos últimos anos pra cá é a presença de mulheres negras -brasileiras e imigrantes-, sobretudo na rua, em frente à Galeria do Reggae. Algumas dessas mulheres são trançadeiras e trazem variados tipos de tranças, penteados e cortes de cabelo, o que é algo muito interessante porque elas trazem consigo vários elementos de estética negra dos seus países de origem e que chegando em São Paulo vão se misturando com outras linguagens locais. Aquela região é uma grande universidade do cabelo crespo, de onde se realizam variados tipos de trança e penteados.

Outro ponto interessante que surgiu na conversa com as mulheres, é que aquela região vai virando uma espécie de território negro marcado muito pela cultura capilar, embora não só. E esse território vai se espalhando à medida que isso vai se espalhando para as ruas do entorno ― Rua Dom José Gaspar, a praça da República -, cada vez mais tomadas por essas profissionais que convidam os transeuntes a realizar essas atividades capilares. Assim o território vai se espalhando, marcado por essa característica e são lugares em que as percepções do próprio público que está caminhando mudam bastante, se for uma mulher ou homem negro ou se são outras pessoas de outras marcações raciais e outros fios de cabelo, porque as interpelações dessas mulheres que ficam na rua se dirigem majoritariamente para as pessoas negras que passam. De modo que não só culturalmente marcado pelos serviços capilares, mas vai se modificando através das percepções, sentimentos, por conta de ser um território da universidade popular do cabelo crespo, as sensações de vivências naquela rua são diferentes para pessoas negras e pessoas não negras. Caminhar pela República, no Centro de São Paulo, se você é uma pessoa preta, você tem um certo tipo de experiência. Esse território crespo gera outros tipos de sociabilidade e de experiências corporais, que são definidas por perecimento cultural e racial de identificação com aquelas mulheres e com os serviços capilares”.

Hélio Menezes nos projeta para uma conexão afrodiaspórica que continuamos ao mergulhar na tese de Mpho Matsipa, pesquisadora na Wits City Institute, na Universidade de Witwatersrand. Mpho contextualiza sobre essa trama do cabelo e da trança na cidade de Joanesburgo quando diz: “Meu cabelo é a única conexão que tenho com o centro da cidade”. Isso porque durante o período de desregulamentação, no início dos anos 1990, o centro da cidade acomodou um grande número de mulheres africanas que trançavam cabelos nas ruas. A paisagem de cabelos e beleza refletiam mudanças nos padrões de assentamento e uso da terra, aumentando a migração regional e internacional feminina, bem como as transformações nas práticas culturais e espaciais negras no centro da cidade de Joanesburgo. Esse movimento também diversificou as técnicas de trança disponíveis na cidade. Essas mulheres introduziram novos estilos e técnicas de trança com fluidez e atenção aos detalhes. Ainda segundo Mpho, as transformações no centro da cidade produziram novas espacialidades, novas subjetividades e aspirações, dissonantes das preocupações colonialistas e globais com a contenção, vigilância e regulação da população urbana. Ao analisar e se debruçar sobre esse movimento Matsipa nos brinda com seguinte frase presente em sua tese: “Como epistemologia, a trança interrompe a grande narrativa de Joanesburgo em ‘crise’, além de interromper a estrutura colonizadora e de gênero dos próprios estudos urbanos”.

E é nessa perspectiva tão potente que nos despedimos dessa pequena viagem envolvida na trama do cabelo, da trança e desses tantos territórios onde as histórias e conexões se entrelaçam em meio ao chamado afro-diaspórico de des-embranquecer as cidades.

notas

NE — Este artigo foi originalmente publicado em PEREIRA, G. et al. Cabeça feita. Terra Preta Cidade, 2019 <https://bit.ly/3J8o1jc>.

sobre as autoras

Emmily Caroline Leandro, Gabriela Leandro Pereira, Maria Luiza de Barros Rodrigues, Natalia Alves, Luciana Mayrink [Coletiva Terra Preta Cidade]

Emmily Caroline Leandro ― Arquiteta e Urbanista (UNIVAP/2013), pós graduada em Planejamento e Gestão Urbana (FAU-USP/ 2016), mestranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ/ atual). Integra a coletiva Terra Preta Cidade e o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais (IPPUR-UFRJ)

Gabriela Leandro Pereira ― Arquiteta e Urbanista (UFES/2006), Mestre e Doutora em Arquitetura e Urbanismo (UFBA/2010/2015). Docente na FAUFBA, integra o Grupo de Pesquisa Lugar Comum e o Grupo de Estudos Corpo, Discurso e Território (FAUFBA), a Coletiva Terra Preta. Autora do livro "Corpo, discurso e território: Cidade em disputa nas dobras da narrativa de Carolina Maria de Jesus" (ANPUR, 2017).

Maria Luiza de Barros Rodrigues ― Arquiteta urbanista (Faculdade Brasileira ― MULTIVIX/2012), Mestre em Geografia (PPGG-UFES/2019), Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP/ atual). Idealizadora e curadora da Vi.bra.tion, plataforma transdisciplinar de pesquisa para a perspectiva crítica da cidade, arquitetura, urbanismo e música. Cofundadora e integrante da coletiva Terra Preta Cidade. Cofundadora da Cidade Quintal.

Natália Alves da Silva ― Bacharel em Comunicação Social ― Jornalismo (UFMG/2015). Mestra em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU-UFMG/2018). Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ/atual). Cofundadora e integrante da coletiva Terra Preta Cidade. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Geografia, Relações Raciais e Movimentos Sociais (NEGRAM ― UFRJ). Pesquisadora intermídia e das artes da presença no Laboratório LIRA.

Luciana Mayrink, Arquiteta Urbanista (2016), com Mestrado em Arquitetura pelo PROARQ- FAU- UFRJ (2018), estuda Política e Planejamento Urbano pelo IPPUR-UFRJ. Coordenadora do Br Cidades, Vice presidente do CAU RJ e Consultora da Pauta Cidades e Favelas do Mandato Taina de Paula na CMRJ.

preâmbulo

O presente artigo faz parte de Preâmbulo, chamada aberta proposta pelo IABsp e portal Vitruvius como ação para alavancar a discussão em torno da 13ª edição da Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, prevista para 2022. As colaborações para as revistas Arquitextos, Entrevista, Minha Cidade, Arquiteturismo, Resenhas Online e para a seção Rabiscos devem abordar o tema geral da bienal – a “Reconstrução” – e seus cinco eixos temáticos: democracia, corpos, memória, informação e ecologia. O conjunto de colaborações formará a Biblioteca Preâmbulo, a ser disponibilizada no portal Vitruvius. A equipe responsável pelo Preâmbulo é formada por Sabrina Fontenelle, Mariana Wilderom, Danilo Hideki e Karina Silva (IABsp); Abilio Guerra, Jennifer Cabral e Rafael Migliatti (portal Vitruvius).

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