Este trabalho pretende re-estabelecer a relação do homem com a água [elemento de alegria, entretenimento e paz], de forma não predatória, mas sim harmônica, baseado na fruição e contemplação, no aproveitamento pleno de suas potencialidades, com caráter fortemente educativo para todas as partes envolvidas: este que no momento escreve, o homem-caranguejo habitante do mangue, e todos os que participam deste processo.
Consiste num projeto de habitação para a área do Caminho Butantã, tendo como premissa a relação direta com a água. Um projeto sobre-dentro-na água, que contempla a criação de novas paisagens urbanas com relações mais elásticas entre dois meios opostos. A terra, onde tudo é parcelado e a água, onde o conceito de propriedade não existe, essencialmente coisa pública, e por isso o seu acesso deve ser garantido, em todos os sentidos. Reforçando esse caráter natural, propõe-se o direito de usufruto para as unidades habitacionais, como nas cooperativas de viviendas uruguaias e nas HLM [habitation à loyer minimum] francesas. Inexiste a propriedade, mas sim esse direito que não pode ser vendido, ele é simplesmente transferido ao outro por diferentes critérios de seleção que o da compra e venda do mercado imobiliário.
A água é tratada como elemento construtivo-educativo, descrevendo um ciclo: a água da chuva armazenada na cobertura, reutilizada na habitação e para culturas experimentais; a água servida captada e transferida pela passarela esgoto-duto por gravidade à micro estação de tratamento, incrustada no morro do Ilhéu e voltada para o terreiro como uma seção didática de seu funcionamento. Desta, ela é devolvida ao canais, tanques, piscinas e finalmente rio-mar, recriando o uso e completando o circuito.
Este projeto considera as particularidades, espacialidades e estéticas da favela e as circunstâncias que a produziram. Na favela “os materiais são encontrados em fragmentos heterogêneos; a construção, feita com pedaços encontrados aqui e ali, é forçosamente fragmentada no aspecto formal. A casa continua evoluindo. Os barracos são fragmentários porque se transformam continuamente” [Estética da ginga, Paola Berenstein Jaqcues].
O espaço proposto também contempla esse caráter de transformação contínua e a apropriação do morador, desde a unidade, na qual o futuro habitante assume a etapa dos vedos verticais [caixilhos e fechamentos] a partir de uma mesma malha estrutural, aos espaços coletivos que podem mudar de função, expandir ou contrair-se dependendo do uso e da necessidade. Enfim, deve ser vivo, e desta forma, favorecer a construção de uma identidade.
O conceito de habitação não se restringe à célula habitacional, mas abrange tudo o que possibilita e é necessário à vida humana: a infra-estrutura urbana, comércio e serviços, e principalmente os equipamentos sociais.
Assim, foi dado enfoque a equipamentos de inserção e democratização cultural-midiática, tais como: biblio-gibi-vídeo-cine-discoteca, oficinas de teatro, música e artes. Estas atividades têm como núcleo de experimentação e propagação o teatro-cinema-auditório-flutuante-ambulante, composto por dois módulos separados, que conectados formam um só teatro com palco central. Com relação aos meios de comunicação, ferramentas de difusão da cultura marginal, essenciais num processo info-educativo e estratégicos para qualquer tentativa de transformação das condições vigentes, propõe-se: telecentro para os ‘analfabytes’, rádio-TV comunitária e gráfica del pueblo [uma espécie de editora cooperativada, que produzisse material didático para as escolas, livros com edições mais econômicas, e até mesmo um jornal comunitário]. Estes programas devem ser associados à geração de emprego e de renda, de forma educativa e cooperativada.
Pretende-se, devido a presente conjuntura político-econômica a que se encontram submetidos os homens-caranguejo, criar meios potenciais de alteração da própria situação que os escraviza, através da subversão das relações de trabalho dominantes. Nesse sentido, são propostas outras duas cadeias produtivas relacionadas a um saber e fazer local:
- oficina-escola de carpintaria naval: consiste em um micro estaleiro cooperativado, de modo a reinserir a prática tradicional da construção e manutenção de barcos de pesca, canoas de uso geral e outras formas possíveis de embarcações, associado a formação de novos mestres no oficio.
- cooperativa dos pescadores: prática que vem perdendo espaço, pelo baixo preço do produto da pesca em natura, deve ser associada a um beneficiamento agregando valor para posterior comercialização do fruto do mar-rio-mangue. Também deve estar relacionada, em conjunto com o centro de estudos do mangue, a uma parte de pesquisa e produção [aqüicultura e maricultura].
Assumido como mais uma cadeia produtiva, de geração de emprego e renda é proposta a usina do lixo, um centro de triagem, primeiro beneficiamento e transbordo de materiais recicláveis para reinserção na cadeia de reprodução e consumo urbanas. A usina situa-se em área estratégica, servindo-se de diversos meios de transporte [canal, ferrovia e a via Anchieta] para a chegada e saída de insumos. Os coletores de lixo, que usam a tradicional carroça, podem também fazê-lo por canoa, voadeira ou flutuante.
No mesmo terreno, se propõe a fábrica canteiro que pesquisaria, desenvolveria e produziria componentes pré-fabricados leves de concreto armado para a construção civil, tais como: laje painel-treliça, painel vertical de vedação, armários, bancadas e bancos [com alturas de 120, 90, 70 e 40 cm, também usados para vedação], patamar e degraus da escada, alvéolos das plataformas flutuantes, além de elementos para a rede de saneamento básico como caixa de inspeção, todos modulares. Funciona como uma cooperativa de formação, pesquisa, produção e construção auto-gerida pelos trabalhadores, moradores da região com o saber prático somado a outros profissionais de formação diversa. E compreende além do galpão de pré-fabricados, serralheria e carpintaria-marcenaria.